terça-feira, 2 de dezembro de 2008

luto

Que o sol apareça, mesmo que de ponta-cabeça.

Diante de todo este absurdo, da ampliação de tudo o que nunca havíamos entendido (a perda, a morte, a vida), opto pelo silêncio mais contrito, por um luto que não ousa nenhuma palavra, por um reconhecer de que nada há para ser dito, e escrevo apenas, somente isto: a mais perfeita indignação, o mais agudo grito, é estenderes a mão, é estenderes a mão (repito).

Escreveria aqui ‘até 2009’, mas desisto. Não escreverei. Espero, em breve, ter algo que mereça ser escrito. Escrever, por enquanto, me parece tão fútil quanto uma bunda bonita. Me despeço sem beijos.

sábado, 22 de novembro de 2008

a vida e a velha

'Renato, o Menino que era Rato' e Léo Kufner, o menino que era Renato, na nova montagem infantil da Cia Carona de Teatro. A pintura é de Telomar Florêncio.

A única coisa que me faz falta, pensa a velha, é aquilo que não senti. Eu poderia ter passado a vida inteira aqui, pensa a velha (e aqui é sentada em uma cadeira de balanço tendo os ossos, que no passado foram nádegas, amparados por uma almofada bege), imóvel, pensa a velha, sozinha, pensa a velha, e poderia ter sido perfeito. A vida não é lá, pensa a velha (e lá, para a velha, já é a partir dali, do centímetro além de onde os seus pés se encontram, do centímetro além de onde a catarata de seus olhos lhe permite ver, do centímetro além daquilo que deixa de ser ela, a velha, para ser outra coisa qualquer), a vida é dentro de mim (e dentro de si a velha vive dores mais profundas do que as do parto que nunca teve, do que as dos cortes que nunca sofreu; e dentro de si a velha vive alegrias maiores do que as de reencontros, de vitórias, de sorrisos; e dentro de si a velha vive medos e vive orgasmos e vive anseios e nada em mares de que só ouviu falar e voa entre nuvens e cai em lugares que nunca conheceu). A vida, pensa a velha, será sempre apenas aqui (e a velha tenta erguer o indicador até a têmpora esquerda, mas o único movimento que o seu dedo agüenta é um leve tremor). A velha, a cadeira sem balanço, as nádegas agora ossos, a vida e a almofada bege permanecem ali, estáticas, enquanto na estrada de barro em frente à casa, rasgando a paisagem, um carro passa.
beijos

sábado, 15 de novembro de 2008

a eternidade de Pililito

Tempos sem escrever aqui. Na foto, o que resta de Pililito. Assim é a eternidade dele. Que a eternidade dele também seja a minha.

Era assim que Maria o chamava: Pililito. Este era o seu nome e o de todos iguais a ele (círculos doces e achatados sustentados por um palito). Não tinha para onde ir, não tinha planos, não tinha êxtases, não tinha medos, nem sobrenome tinha. Era Pililito e pronto. Como os demais pirulitos. Não pensava em ser mais do que era nem podia ser menos. Não pensava em ser nem podia não ser. Não pensava e nem poderia (melhor para Pililito e melhor para Maria). Na única foto em que apareceu, de Pililito via-se apenas o palito. O resto se supunha dormindo no escuro criado pelas venezianas dos dentes de Maria. As rugas no corpo de Pililito não eram rugas, eram ausências. O tempo não era um secar e encolher do corpo como seria com Maria, como acontecia com frutas e bichos e folhas e outros. A vida de Pililito, o caminho que levava à morte de Pililito, era idêntica à de deuses e de idéias e de crenças e de dores. A vida de Pililito, a morte de Pililito, era (assim como a vida e a morte de idéias e dores e crenças e deuses) um lento desaparecer. Sei mais sobre Pililito do que ele jamais saberá sobre si. E nem o interessaria, acredito. O que interessa a Pililito é ser derretido até que, daquilo que ele era, reste somente o palito mastigado e torto (esquecido na grama de um parque? Jogado na lata de lixo?). A história de Maria eu não quero contar porque a história de Maria será sempre a história do pirulito seguinte, daquilo que há de vir, da angústia que sufocará. A história de Maria eu não quero contar porque a história de Maria é a história tua e minha, a história de um buraco que só é preenchido momentaneamente, a história de uma constante busca daquilo que no segundo seguinte volta a faltar. Aplaudo Pililito, mas ele, sensatamente, não tem ouvidos.

Beijos de um moralista.
E que a paz de Pililito esteja conosco agora e na hora da nossa morte. Amém.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

o silêncio no grito de todas as cores


para Mareike, com amor

Prestava atenção nos sons. Em todos os sons. No chiado intermitente das ondas que, feito um pedido de silêncio, feito indicador sobre os lábios, calava o espalhar de infinitos grãos de areia amassados pelos passos. No farfalhar das folhas secas deslocadas por algum bicho (lagarto? Cobra? Rato?) a uma distância segura do seu corpo. No vento suave que assoprava, nas pernas, um machucado inexistente. Nos gritos distantes de crianças que não eram as suas (porque não as tinha) e que chegavam mornos e curtos aos seus ouvidos (que estes sim, por serem parte inata do seu corpo e não algo que em seu corpo surgiria, os tinha). No crepitante ruído (que imagino, pois não os ouço. Os meus sons são outros) da pele crispada pelo sol. No piar de pássaros desconhecidos. Na voz da sombra que a abanava (que é diferente da voz abafada de lugares muito claros. Que é diferente da voz aguda dos lugares escuros). Prestava atenção nos sons porque tudo era música. Até o silêncio branco do sono era um silêncio composto por todos os sons, assim como o branco é o silêncio no grito de todas as cores. Dormia porque a música continuava. E, dormindo, desenhava com o corpo esguio uma nota nova na estranha partitura amarela e branca daquela cadeira de praia.

Beijos

sábado, 13 de setembro de 2008

outro do Eráclito


O homem estava sozinho. No seu passado, atrás de si (para onde conseguia olhar colando o queixo no ombro esquerdo e forçando bastante os olhos) havia caminhos, sorrisos, medalhas das lutas que ganhara contra monstros, contra insetos, contra outros homens mais fortes do que ele, contra si mesmo (e a si mesmo sempre vencera até aquele momento sem maiores dores, sem arranhaduras), mas dali onde estava até onde conseguia enxergar não havia mais nada, apenas o peso de uma vida transformada em vai e vens de dias e noites, de meses, de angústias incompartilháveis (não por serem as angústias não compartilháveis, mas por ninguém mais por elas se interessar), de sonhos solitários, de anátemas nunca pronunciados. O homem estava sozinho e pela primeira vez se deu conta do quão sozinho estava. Nada mais fazia sentido. Nem a vida. Nem a morte. E era por este motivo fútil que ele ainda continuava vivo. Por ser mais fácil. Menos trabalhoso. Mais digno.

Beijos

sábado, 6 de setembro de 2008

a lua que queres


Algumas pessoas vêm me perguntando sobre o Eráclito Borges e sobre como conseguiriam algo dele. O Eráclito foi um amigo meu, que faleceu em 2002, ainda novo (tinha 35 ou 36 anos, não me lembro ao certo). Conheci o Eráclito quando morei em São Paulo, e tomamos alguns cafés juntos perto do Espaço Unibanco de Cinema (saudades de lá). Nunca chegou a publicar nada mas, quando soube que estava muito doente e que dificilmente ‘alcançaria a idade dos pais que, graças a deus, não conheceu’ (palavras dele, inclusive o graças a deus, expressão que ele usava repetitivamente apesar de ser ateu ‘da cabeça aos pés’), deixou comigo uma pasta com alguns cadernos para que eu ‘fizesse o que eu quisesse’. É deste acervo que eu cato alguns textos aqui para o blog. As anotações de que mais gosto são de seu ‘Diário do Isolamento’, textos que escreveu durante um ano em que ficou totalmente sem comunicação com qualquer ser humano, morando em uma cabana sem eletricidade no meio do mato. Este aí embaixo é do Livro III, com data de 11 de janeiro de 2001. Penso em, no futuro, organizar e publicar alguns de seus textos.

para Jenifer Bonezzi (que me perguntou sobre o Eráclito)


Eu só tenho para oferecer o que já me disseste que não queres.
Posso até te criar cores que não são as do meu corpo, que não são as dos meus olhos, mas em pouco tempo desbotarão.
Posso até usar palavras que nunca uso, palavras que travam a boca pela total inépcia desta em pronunciá-las, mas elas (as palavras, as frases) nunca sairão conforme imaginas.
Posso até, feito personagem literário, escalar montanhas e voando nas asas dos pássaros trazer-te a lua, mas olharás para ela, para a lua, e tomá-la-ás na palma clara da tua mão e, examinando a lua, dirás que não é ela, que aquela lua que tens na mão não é a lua que mora no alto do céu, que aquela lua que tens na mão não é a lua que tanto brilhava nas noites escuras e nos sonhos românticos que te despertavam suada no meio da madrugada, que aquela lua que tens na mão é pura e simplesmente uma cópia fajuta comprada a prazo de uma loja em promoção.
A lua que queres tem a circunferência, a profundidade e o relevo do teu umbigo. Eu não posso te oferecer o que já tens. E o que eu tenho para oferecer já me disseste que não queres.
Então pego das tuas mãos a lua e, trajeto idêntico (montanhas, pássaro, nuvem, céu), devolvo-a ao mesmo local de onde a tomei. Sentada na sacada do teu prédio deserto olhas para mim e falas ‘querido, não consegues mesmo me amar’, apontas com o teu indicador fino para um ponto entre as estrelas, para o exato ponto em que estive instantes antes e, manhosa, dizes ‘é aquela. Aquela é a lua que eu queria’. Ergo a tua camisa e beijo, sem qualquer esperança de que um dia entendas, o teu umbigo.

beijos

terça-feira, 19 de agosto de 2008

sobre o amor

Com tantos términos e inícios de relacionamentos ao meu redor (de amigos, de conhecidos, de outros); com tanta gente à procura de alguém como se procura a melhor marca pelo menor preço na prateleira vazia de um supermercado em uma tarde de sábado; com tanta lágrima (dos outros, minha) derramada no leito fundo do rosto; com tantos medos e noites solitárias; com tanta espera; com dores que se materializam na pele, no corpo; com sofrimento; com tanta desesperança (de conhecidos, de amigos, de outros), resolvi pensar sobre o amor e pensando sobre o amor descobri que penso sobre ele o mesmo que pensava Eráclito Borges. E, por este motivo, escrevo sobre o amor o que Eráclito escreveu, antes de ser levado por um deus no qual não acreditava, no seu ‘Diário do Isolamento’, Livro IV, de 12 de março de 2001. Nele, assim lemos:

‘Amar o outro é não o limitar.
É saber que o outro é maior do que tudo o que dele podemos chegar a conhecer.
É saber que o outro tem o seu caminho e que o caminho do outro pode ter um destino diferente do nosso, e ajudar o outro a abrir o seu caminho mesmo que isto consista em perdê-lo, mesmo que isto consista em ficar sozinho (e, ficando sozinho, nunca se sentir sozinho).
Amar o outro é despedir-se dele com um beijo carinhoso no rosto.
Amar o outro é saber deixar o amor próprio de lado, é saber ser bobo, tolo, porque só quem ama a si próprio consegue ser tolo, bobo, e consegue amar o outro.
Para se amar o outro não se pode ter medo da solidão, não se pode permitir a tentação de encarcerá-lo naquilo que nos falta, nem se pode fazer do outro as grades da nossa própria prisão.
Mas maior do que tudo o que acima eu disse,
Digo que amar é explicar ao outro os nossos limites para o amor,
Porque limites temos já que ninguém é santo
E, por mais que queiramos apedrejar, em amando, ninguém é pecador’.

E que assim seja
Beijos

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

eis-me aqui


e que assim seja.
Ele estava mais velho do que podia acreditar. Tentou contar os anos um a um até o ano zero, até voltar a ser uma bola de qualquer coisa sob o novelo de lã dos intestinos da mãe, mas o fôlego fugiu quando chegou aos cinqüenta e três e nisso um dia e uma noite já haviam passado. Apertou um botão, idêntico ao alarme que destravava o carro que ele nunca mais dirigiria, e esperou a refeição de remédios a ser oferecida pela enfermeira do dia. Riu de si, do reflexo de si que aparecia na tela da tevê quando ela ficava escura. Estou ficando escuro, pensou. Estou me eclipsando. Preciso tentar, pensou, ao menos tentar. Molhou a baba seca que cobria os lábios com o resto de saliva que disfarçava a aspereza da língua. Quis falar, mas ninguém ouviu o grunhido grave de um velho quase mudo. Apertou o botão. A enfermeira não veio. Percebeu que estava com fome, mas não tinha como chegar à geladeira (‘o que tu queres está ali, ao teu alcance. Vai, te lança’, lembrou-se dos pregadores todos de sua infância: pais, pastores, médicos, professores. ‘Vai, menino. Por que não sorris?’). Percebeu as coxas molhadas pela urina que saiu do seu corpo, sabia, mas não sabia quando ou como (‘tens que te responsabilizar pelo que fazes. Tudo deve ser calculado. Todo mal pode ser prevenido’, lembrou-se dos pregadores todos de sua vida: amigos, livros, mulheres, filhos. ‘Anda, homem, que a vida não anda por ti.’). Percebeu que a enfermeira havia saído, que não havia mais enfermeira, que não havia mais ninguém, que na sua mão dormiam apenas um botão inútil e uma sala de mentiras (‘Ele está ali’, diziam de deus, dos santos, da força cósmica, dos anjos. ‘Estou aqui’, diziam as sucessivas cônjuges o abraçando. ‘Nós também estamos’, o coro bêbado dos amigos tentava, desafinado, um canto). O velho estava sozinho. E o velho entendeu que ele e a vida ainda faziam o que ele e a vida haviam feito o tempo inteiro: brigavam para ver quem guiava e quem seguia. E o velho entendeu que era sempre ele quem perdia, que fora sempre ele quem perdeu. O velho entendeu que ele nunca tivera o controle de nada: de esfíncteres, do sono, do que queria ou desejava, dos outros, até mesmo os próprios sonhos o velho nunca controlara. E o velho entendeu que não acreditava em nada e que não fazia falta acreditar. Então o velho resmungou, lábios grudados, ‘eis-me aqui’, e a vida veio, melhor e mais bonita do que a enfermeira que desaparecera e, cobrindo com o vento da palma da mão os olhos do velho, sussurrou ‘não há mais dor’. E o velho sorriu. E não houve mais dor alguma. E a vida abriu as cortinas brancas da sala do velho e, voando, partiu.

beijos

segunda-feira, 14 de julho de 2008

o pavão

De volta à fauna de Aguardo (e, na falta de pavões para a foto , optei por uma foto bem colorida, de um desfile).

para Eduardo Pedrini

Sendo pavão, esvoaçando cores na cortina da cauda, Ilusão (o nome do bicho) caminhava rei e senhor no espaço apertado e árido do único zoológico do estado. Ilusão fora confinado ainda feto de pavão, ainda semi-vida, na incubadora importada que técnicos gabaritados haviam comprado especialmente para ele, para Ilusão, esperança de colorido especial para as tardes de sábado. Não soube ele enquanto feto, e nem depois quando adulto, que os cinco metros quadrados não eram o mundo, que os cinco metros quadrados eram apenas cinco metros quadrados e apertados. Ilusão entoava cânticos com olhar altivo e gogó afinado para turmas de crianças deficientes acreditando-se diante de seleta platéia especializada. Os aplausos serviam, para Ilusão, de confirmação do seu talento nato. Ilusão era, ou melhor, acreditava ser, perdoem-me a ironia, um leão. Pintava também. E exibia os quadros todos perfilados com assinaturas que ocupavam metade da tela. E escrevia. Poesias. O êxtase dos outros era o combustível do tanque de Ilusão. Viveu ali, nos cinco metros quadrados do único zoológico do estado até que adoeceu e, em menos de um mês, foi sepultado e esquecido. O espaço apertado e árido que era o mundo de Ilusão passou a ser a casa de Avestruz, que como o próprio nome diz era uma fêmea de avestruz. Os mesmos aplausos oferecidos a Ilusão eram agora oferecidos ao pescoço de Avestruz. Das cores de Ilusão poucos se lembram, restam apenas fragmentos do seu suposto brilho em fotos rasgadas e perdidas entre restos de comida e plástico no maior depósito de lixo daquele estado.
Beijos

quarta-feira, 9 de julho de 2008

por uma literatura de merda

A literatura é a única coisa (arte, ofício, etc...) que pode destruir o mundo através daquilo de que os homens mais se admiram: a sua auto-consciência. Não há como ler Thomas Bernhard e continuar achando tudo bonito. Podemos até ser felizes, mas temos que parar de pensar. Ou como diz Adenilton, o taxista: ‘a gente pensa muito. É isso que nos deixa deprimidos. Decidi parar de pensar’. E aí: biblioteca ou sorrisos?Por este motivo sou a favor de uma literatura que olhe a merda de perto. Que a examine. Que ria dela (e de nós também). Mas quero também continuar sorrindo...

Joãozinho caminhava em chinelos de dedo, o contorno das unhas dos pés mastigando o barro das ruelas da cidade pequena, o sol queimando o rosto sem indícios de pêlos, na mão direita, apertado firme, um martelo de cabo de madeira, na esquerda, espremido entre indicador e polegar, um prego furando o ápice de uma folha, na folha, em letra corrida, ‘a igreja é uma merda’. Na porta da igreja, da altura de três Joãzinhos, pregou a folha. ‘A igreja é uma merda’.
Joãozinho corria impulsionado por um par de tênis doados. Madrugada. Fugira de casa levando nas mãos uma folha onde estava escrito ‘a prefeitura é uma merda’, o martelo de cabo de madeira e um prego. Na porta da prefeitura, da altura de um Joãozinho e meio, pregou aquilo. ‘A prefeitura é uma merda’.
Joãozinho, após acabar a prova, tirou de dentro da mochila de lona um papel amassado, manchado por letras grandes e amassadas, onde se podia ler ‘a escola é uma merda’. Pediu licença à professora, a quem chamava pelo nome e, concedida a licença, atravessou o corredor e pregou, na porta de madeira que escondia um botijão de gás (da altura de meio Joãozinho), o papel escrito ‘a escola é uma merda’. Quando o vento erguia a folha era possível ler no verso ‘e os professores também’.
Joãzinho vestiu o pijama de inverno, calça e camisa compridas, deitou-se no colchão macio, puxou para sobre o seu corpo o cobertor e a poeira que havia nele, e ficou olhando, na escuridão do quarto, uma folha que só ele via e na qual só ele sabia que estava escrito ‘a vida é uma merda’. Escondeu a folha embaixo do colchão, da mesma forma que a sua mãe fazia com os embrulhos de presentes.
Em uma manhã daquele ano, naquela cidade, naquele quarto, os pais de Joãozinho estranharam a demora do filho e foram acordá-lo. No quarto de Joãozinho estava Joãozinho morto, um filete de sangue escorrendo do meio da testa onde estava pregado um bilhete lacônico que cobria nariz e boca do menino. ‘Eu também sou uma merda’.

Beijos.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

A vida sem cachecol (ou O que é menos real do que um amor de fachada?)

Eu voltando à velha forma de destilar veneno contra tudo. Não me gosto quando estou assim, mas faço o possível para aproveitar ao máximo essas horas de ceticismo e desilusão.

Quando todas as coisas finalmente pararem de fazer sentido o que restará no abismo além do frio e de um espelho? Prefiro o frio, disse o menino. Eu entendo o menino.
Se todas as coisas caminham inexoravelmente para a solidão porque não ser solitário desde já? Prefiro televisão, disse o menino. Eu entendo o menino.
Existe algo menos real do que um amor de fachada? Existe, disse o menino. Um fantasma. Eu entendo o menino.
Alguém ainda conseguirá nos abraçar com mais do que braços e nos entender com mais do que boa vontade? Acho que não, disse o menino. Concordo com o menino.
Sendo tudo assim, por que ainda falamos? Eu não falo, eu só respondo, disse o menino.
Estás com sono? Não, ele disse. Eu também não, comentei. Vamos falar sobre o quê? (pergunta minha). Podes escolher (resposta dele).
Resolvemos falar sobre nada, como alguém que faz sexo de madrugada porque é melhor do que ficar de olhos abertos para a escuridão.
Qual a tua cor preferida? Verde.
Qual o teu time? Flamengo.
Qual o teu ator preferido? Al Pacino.
Onde gostarias de fazer amor? Numa ilha deserta.
Perfume preferido? (o menino não sabia nomes de perfumes).
Sonho de consumo? Um avião.
Comida? Churrasco.
E assim fomos até gozarmos. Viramos de lado e fingimos dormir. Como a vida é simples quando se olha pra ela como se olhássemos admirados para uma vedete dos tempos do rádio...

Beijos (ou apertos de mão distanciados)

domingo, 15 de junho de 2008

pra falar de amor

Depois de xingar poetas, eis que escrevo uma poesia. Adoro telhado s de vidro. E adoro atirar pedras.
Estou escrevendo um novo monólogo, cujo título provisório é ‘Três Fadas e Dois Filhos’. Do jeito que ando escrevendo (como se a vida se resumisse a isso) deverá estar pronto logo.

Pra falar de amor eu vou calar o resto, fechar os olhos, baixar o rosto, tirar de perto a poeira da estrada, dos caminhos tortos, bater a toalha de mesa pra espantar as migalhas onde tropeço.
Pra falar de amor eu vou chamar baixinho por ti, sem que me escutes, pra que me sintas no teu sono calmo, eu breve e mudo, olhando enquanto dormes, alva e linda, na penumbra do teu quarto.
Pra falar de amor eu vou matar os verbos porque o amor que ouso é um amor quieto, menos obrigações, menos vetos, menos tudo exceto estares perto.
Pra falar de amor eu serei outro e tu a mesma, pois tu és tudo o que o amor almeja e eu, de mim, sei apenas que sou pouco.
Beijos

sexta-feira, 13 de junho de 2008

na tela plana do vidro fumê da janela da casa


Boa noite, gente. Texto daqueles que só o Dani gosta (então esse é de novo pra ti, querido). ‘O Capitão do Mar’ está pronto. Atracará no porto de Itajaí em 2009.

‘Estou cansado de assassinatos’, disse Gregory sentado na poltrona desfiada por unhas dos gatos. Tinha três malhados. Estava nu, uma toalha molhada dormia a sesta no piso úmido da sala. ‘Estou cansado de traições’, disse Gregory procurando pela faca ainda suja de requeijão. ‘Estou cansado’, disse Gregory e esperou a porta abrir para observar o Gregory que chegaria em breve (como sabia Gregory que o outro Gregory chegaria, eu, que também me chamo Gregory, não sei, não me foi dito). ‘Estou cansado de ver o tempo passando na tela plana do vidro fumê da janela de casa’, Gregory pensou. ‘Estou cansado de assassinatos’, Gregory pensou. Gregory pensou, ‘estou cansado’.
Aberta a porta, o outro Gregory jogou a pasta no chão e pousou a chave do carro na mesa de madeira rústica. O Gregory cansado de assassinatos ergueu-se súbito e encostou o requeijão da faca no pescoço do outro Gregory. ‘Estou cansado de assassinatos’, ele disse. ‘Estou cansado de traições’, falou mais baixo. ‘Estou cansado’, sussurrou. O requeijão colou-se à fatia de pão do pescoço do outro Gregory. O outro Gregory, temendo a morte, orou baixinho (o outro Gregory acreditava em deus, em búzios e em duendes. Não me perguntem como sei, porque eu que narro e que também me chamo Gregory não tenho resposta alguma. Sei apenas que sei, como um Sócrates às avessas). E o outro Gregory, o que orou baixinho, sem saber também o porquê, gritou (o grito aproximando jugular e requeijão) ‘não existe assassinato, não existe traição, não existe cansaço, não existe esse Gregory que me ameaça, não existe essa casa’ e pediu ‘deus pai, desapareça esse Gregory nu sentado na poltrona da minha casa. Búzios, icem o corpo magro desse Gregory nu sentado na poltrona da minha casa. Duendes, matem esse Gregory nu sentado na poltrona da minha casa. Desapareça, Gregory. Desapareça’. E o encanto se fez real e palpável pois eis que o Gregory desapareceu. Não o da faca. Não o da pasta. O Gregory que desapareceu fui eu, que narro. E não me perguntem como, mas o que sei é que o outro Gregory morreu assassinado com a faca enterrada no pescoço branco acumulando requeijão perto do cabo. E o primeiro Gregory, o que estava nu, o Gregory cansado, nunca foi encontrado.
Na cena do crime restaram apenas um corpo deitado ao lado de uma toalha molhada e o vidro fumê da janela da casa. Ah. E três gatos malhados.

Beijos

segunda-feira, 9 de junho de 2008

odeio poetas


Hoje um pardal morreu nas asas do tempo. Chocou-se contra o vidro. Ele ainda via um longo caminho, via mato, via morro, via dia quase se transformando em noite. Ia rápido, o pardal, assoviando uma melodia do Tom. Tinha um vidro. Tinha um vidro. A melodia do Tom bateu o bico e caiu na grama. O pardal morreu. Não morreu triste. Quem ficou triste fui eu. E tenho vergonha. Não quero ser o homem que antecipa o vidro, nem quero ser vidro, nem quero ser medo. Quero o meu vidro como o pardal teve o dele. Sem tristeza. Assoviando uma melodia do Tom.

Odeio poetas. Poetas que enaltecem poetas. Poetas que escrevem textos que afirmam que os poetas (eles próprios) são a brisa que eriça os pêlos da humanidade doente (traduzindo: eles, os poetas, seriam a nossa cura). Odeio poetas porque poetas são purpurina. São laquê. São peruca. O vento não os balança. São escultura inabalável erguida do barro do auto-elogio. Poetas não fazem poesia. Poetas fazem rimas para almoços beneficentes, fazem cartas para os pais, para os amigos, textos para cerimônias de formatura. Poetas engatinham procurando palmas, apoio público, financiamento. Poetas odeiam poesia. A poesia que vive nas dobras da pele, que fede, que dói, que foge, irrita os poetas. A poesia que não pode ser escrita no jornal de domingo, a poesia que não serve para o sussurro no ouvido da noiva, a poesia que afunda nos bueiros das veias, a poesia que morre logo depois de formulada, essa poesia, que nunca trará louros a quem a produz, que nunca trará fama nem amores nem dinheiro, essa poesia avessa ao sucesso é a poesia que não pertence aos poetas. Vida eterna à poesia. Morte imediata aos poetas.

Beijo

terça-feira, 3 de junho de 2008

eráclito borges

Por total falta de inspiração (em que acredito muito pouco – acredito em suor, em tempo, em dedicação, em doação) não deixarei neste blog, pela primeira vez, um texto meu. Hoje não tenho nada a dizer além do que li de Eráclito Borges, e transcrevo. Dos mortos, sinto falta de alguns. Entre eles, de Eráclito.

‘Enquanto a finalidade da vida de todos os que conheço é descobrir sentido mesmo na ausência de felicidade, o meu objetivo é me manter vivo apesar da completa falta de sentido’.

E do ‘Diário do Isolamento’, Livro I, 21 de Janeiro de 1999:

‘Hoje eu acordei sem saber para quê.
O sol brilhava alto no horizonte e uma mulher linda gargalhava à beira do ouvido de seu namorado.
Um carro freou brusco para evitar um acidente.
O cachorro que havia acabado de urinar latiu para a sombra de uma árvore.
Um vizinho desligou o liquidificador.
Hoje eu acordei sem saber para quê.
E duvido que sol, mulher, carro, namorado,
Duvido que ouvido, cachorro, vizinho, acidente,
Duvido que sombra, que horizonte, que liquidificador,
Duvido que beira, brusco, para,
Que o, que do, que um, que a,
O soubessem’.

beijos

terça-feira, 27 de maio de 2008

o menino que catava bostas

‘Aguardo’ já está sendo vendido na Livraria Alemã, em Blumenau. Leiam. Critiquem.

Para o menino que catava bostas

O menino que catava bostas desceu sozinho no ponto final do ônibus. Não agradeceu ao motorista. Não se despediu do cobrador. Era esperado pela turma de sempre, o menino que catava bostas. Pelos vizinhos, pelos doutores, pelas mulheres. Diziam elas: sai de perto, menino. Fedes. Diziam eles, os vizinhos: toma vergonha na cara, ô menino. Cresce. Diziam os doutores, protegidos do odor pela vassoura dos bigodes: está doente. O menino que catava bostas passava por eles de olhos baixos, procurando nas saliências do barro uma bosta diferente, uma com o contorno mais nítido, outra com bolhas de gordura, outra dura e oval e pequena. O que mais interessava ao menino eram os tipos, não de onde vinham (do cu de quem), não o quanto cheiravam, não as variantes de cor. O menino que catava bostas catava em cada bosta uma nova escultura. Vozes se levantaram contra o menino. Falavam que aquilo era indecente. Perguntaram pelos seus pais (‘será que o maluco não tem mãe?’). Tentaram algemá-lo (‘eu é que não vou tocar naqueles pulsos’). Criaram grupos para catequizar o menino que catava bostas (‘em nome da ordem, do amor, e do Deus Odorante’). Nada tirava da idéia do menino a fixação por bostas. Submeteram o menino à hipnose (à distância). Deram aulas (mulheres em tailleurs apontavam para flores – bonitas, e depois para bostas – feias), mas o rosto do menino, arado pela coleção de tapas, teimava em se desviar para as bostas. Quase desistiam dele quando um canhão disparou uma bola que esmagou o menino contra o barro como um passo esmaga uma bosta no meio da estrada. Aplaudiram a morte do menino que catava bostas. A morte do menino que catava bostas foi manchete internacional. Todas as bostas guardadas pelo menino (as mais perfeitas, as com curvas difíceis, as praticamente impossíveis em sua geometria) foram queimadas. A vida do menino só fazia sentido por causa das bostas. Agora nem mais bostas nem mais menino faziam sentido.

Beijos

domingo, 11 de maio de 2008

um balde vazio de pipocas

Mais um pouco de Eráclito Borges. E depois um texto meu.

‘O meu livre arbítrio é a possibilidade de não escolher a única porta aberta’

‘No país em que caminho (apenas eu, ninguém mais)
Por ruas vazias de postes, na areia vazia de mar,
Grito sem eco e sem vizinhos:
Estou sozinho, estou
sozinho’.

Com um movimento de pinça dos dedos trêmulos da mão direita, a velha encontrou, no fundo do balde, uma última pipoca. Levou-a à boca e esperou, na ausência de dentes, que ela amolecesse. Observava impassível, sentada na madeira úmida do banco da praça, o casal que discutia a poucos metros de para onde apontavam as dores de seus joelhos cansados. O homem, forte, elevava a voz e o indicador contra o rosto da moça. Falava ‘puta’, e a velha ria. Gritava ‘pensas que aquilo não me machucou?’, e a velha aplaudia. ‘Achas que o que tu fazes não tem conseqüências? Que não dói aqui?’, o homem mostrou o próprio peito quando a velha cuspiu o resto da pipoca na grama úmida da praça. ‘Não tem desculpa. Não tem desculpa’. O homem tirou de algum lugar (a velha não soube precisar de onde) um revólver. Apertou-o contra a testa lisa da moça. ‘Não tem desculpa’. A moça chorava uma lágrima órfã que escorregava de um de seus olhos. A velha apertava o balde sem pipocas torcendo para que a moça falasse algo, torcendo para que ela se explicasse. A moça continuou calada até que o som do tiro abraçou um suspiro baixo e curto. O corpo da moça cobriu a grama com o seu peso pequeno. O homem largou o revólver como uma mulher se despede do amante ao perceber a imprevista chegada do marido. Joelhos manchados de barro, o homem manchou também as mãos com o sangue que vertia da testa da moça. A velha colocou o balde sem pipocas no banco (feito filho carinhosamente ajeitado no berço), demorou para se erguer, demorou para chegar perto da moça morta, demorou para acariciar o rosto desesperado do homem forte, demorou para deixar de tocar o rosto atônito do homem forte, demorou para cessar as palmas que iniciou após deixar de tocar o rosto atônito do homem forte, demorou para falar para o homem forte (ainda desesperado, ainda atônito) e para a moça (ainda morta) que achara lindo e poético aquilo de se morrer por amor, aquela cena, aquele ato. Despediu-se erguendo um ‘bravo’ arcaico e falou ‘Pena que na vida real as mortes são apenas mortes’.

Beijos

sexta-feira, 2 de maio de 2008

a cabeça empalhada do animal na parede manchada da sala

Um poema de Eráclito Borges (assinado com minhas lágrimas) e um texto meu.
Desculpem-me, amigos, pelo que fui e pelo que fiz, pelo que sou, por não seguir aquilo em que acredito.
Desculpem-me por colocar pedras no caminho, por tirá-las quando nos protegeriam,
por lançá-las uma a uma, em chuvas torrenciais, sobre as cabeças de quem amo.
Desculpem o mal que faço, o bem que nego, os passos tortos e todo o resto.
Desculpem-me como quem desculpa um assassino: fechem os olhos e sigam reto.

para Eráclito Borges


O desejo dele, de Jorge, era de tê-la como alguém tem a cabeça empalhada de um animal na parede manchada da sala. Lembrança de uma caçada. Se a cabeça ousasse mover os olhos para expulsar um cisco, ou se a cabeça oscilasse um pouco massageando o torcicolo, Jorge gritaria raivoso do quarto em que dormia pontualmente às onze horas: ‘chega. Me incomodas’. Jorge não sabia que no verso da parede, nas costas da parede, no lado da parede que ele nunca via, continuavam, a partir da cabeça do animal, o tronco, as patas, o rabo. Era apenas a cabeça empalhada o que Jorge conhecia. Na memória dele, projetada feito uma cópia velha de filme (rabiscos como minhocas passeando no granulado preto e branco), as cenas do tiro liberando a bala que atingira o corpo esguio do animal selvagem. Do todo do animal restava a cabeça sustentada por dois pregos enferrujados. Os gritos e o brilho nos olhos viviam em um passado do qual ninguém, nem Jorge, nem o animal, se lembravam. O amor que ele, Jorge, nutria por ela, era o amor que alguém nutre pela cabeça empalhada de um animal na parede manchada da sala. Lembrança de uma caçada.
Jorge encarou a mulher que caminhava na sua direção (‘chega. Me incomodas’), beijou a sua testa lisa (‘chega. Me incomodas’), beliscou carinhosamente a sua bochecha (‘chega. Me incomodas’), e disse (‘chega. Me incomodas’) ‘eu te amo’.
Beijo

sábado, 26 de abril de 2008

feito uma flecha contra uma maçã sobre alguma testa


'Aguardo' está lançado.
para Fábio Hostert

As nossas jaulas estavam separadas por 2 metros de penumbra e cheiro de mofo. Eu havia trancado Stela e acabava de jogar a chave da minha cela para longe, através de um dos espaços entre as colunas de aço. ‘Stela’, eu sussurrei, mas Stela não me ouviu e eu não pude tocar o seu corpo ou os seus cabelos para despertá-la. Eu nunca mais poderia. Estávamos assim e assim estaríamos durante os intermináveis dias e noites da minha eternidade de vampiro (‘prazer’, eu digo, agora que finalmente me apresentei) e durante as poucas dezenas de anos em que Stela ainda seria ela, Stela. As grades separavam o que a vida não uniu. Estico o braço, mas a pressão do aço contra o meu tórax limita o movimento. Stela diria, como já dissera, ‘ninguém muda aquilo que é’. Eu sou um vampiro, Stela. Ninguém muda aquilo que é.
Stela, eu te prendo porque eu te amo. Simples assim. Se eu te libertasse eu voaria sobre o teu pescoço como uma flecha contra a maçã sobre alguma testa. Para que te mantenhas viva eu tenho que te prender. Para que te mantenhas viva eu tenho que te manter longe de mim. Simples assim. Mas não tão longe que eu não te veja, não quero sobre mim uma morte (que, se me privasse de ti, ocorreria) um tanto quanto paradoxal para a imortalidade de um vampiro. Então, Stela, escuta-me enquanto dormes. Ouves? Estou sussurrando que eu te amo. Eu te amo, Stela. Eu te amo. Parece que choro? Não choro. Eu não sei a cor dos meus olhos.
Lírio (é esse o nome que Stela me deu. É assim que ela me chama), ninguém muda aquilo que é. Os teus caninos te distanciam de mim mais do que este par de grades. Eu te diria ‘me beija’, mas os teus caninos não me beijariam. Estou aqui, eu te diria (Stela falaria), mas a tua aproximação seria a torneira que abre a jugular. Não é isto o que queres. Eu sei, Lírio. Então fica aí, onde ainda consigo ver o teu rosto, e eu ficarei aqui, onde podes ainda me observar, até que as horas e as noites e a fome e a dor tirem de mim, silenciosamente, o sangue que te encharcaria os lábios.
Eu balanço as grades como se fosse possível arrancá-las. As minhas mãos doem. Stela dorme. Quero avançar sobre o seu corpo. Quero o seu pescoço. Quero gritar no seu ouvido oco o que ela, Stela, já sabe. ‘Eu não consigo mudar o que eu sou’. E quero penetrar o rio vermelho perdido ali na sua carne como se fôssemos um, Stela e eu, Lírio e ela. E depois descansar no seu colo morto, no seu colo calado feito uma boneca de pano, guiando a sua mão fria, a mão fria de Stela, por entre os meus cabelos suados, e articulando em seus lábios secos, nos lábios secos de páginas de jornal, as palavras que eu sei que ela, Stela, diria: Eu te amo.
Stela dorme e eu cansei de brigar com as grades.
Ninguém muda aquilo que é.
Sento-me cansado no piso frio. Olho os meus pés descalços. Tiro a prótese de sobre os meus dentes podres. Passo a língua áspera pelas falhas da arcada. Percebo a minha corcunda, os meus braços magros. Stela dorme o exagero dos calmantes. É por este motivo que permanece comigo. Da minha cela eu tento gritar, pela enormidade da distância que nos separa (mas o que sai da minha boca é um som abafado, quase um ruído), ‘Eu sou um vampiro. Eu sou um vampiro’. Stela ronca. ‘Eu sou um vampiro’. Passam alguns minutos. Eu sou um vampiro. Mais alguns minutos. E juro que eu quase acredito.
Beijos

domingo, 13 de abril de 2008

carmem, por jorge


Não me interessa a realidade, me interessa o que eu penso que a realidade é. Corro o risco de falarem que é escapismo. Escapismo é ter certezas.

para Daniel Olivetto
Apenas ela, morta, e eu, magro, estamos no estômago da capela. Mais ninguém. Eu me sinto sozinho como eu sempre estive e como nunca percebi. E penso: ‘Carmem’, e quero que Carmem, a morta, pense: ‘Jorge’, mas Carmem, a morta, não pensa, e eu, Jorge, então falo ‘Carmem’, e quero que Carmem, a morta, fale: ‘Jorge’, mas Carmem, a morta, não fala, e eu, garganta seca, cabelo ralo, então grito: ‘Carmem’, e quero que Carmem, a morta, grite: ‘Jorge’, mas não é ela quem grita: ‘Jorge’ e sim dois ou três amigos bêbados que ainda estão comigo (é deles o grito): ‘Jorge, a tua mulher morreu. É assim a vida. Sossega. Te acalma. É assim a vida’.
A vida não é assim. Os dois ou três amigos bêbados estão em outro lugar (outro bar ou outra capela) e sem que eu precise gritar: ‘Carmem’, nem mesmo falar ou pensar: ‘Carmem’, Carmem, a morta, ergue-se linda do colchão em que era velada (está jovem) e caminha até mim, até o meu corpo (também jovem), e responde: ‘sim’, e completa: ‘sim’, e ainda (sim): ‘por toda a vida’. E, estranho, eu não me sinto sozinho

Beijos

quinta-feira, 3 de abril de 2008

mais triste do que uma esfiha fria

Nesta sexta-feira, aniversário de 3 anos do grupo K. Parabéns Léo, Rafa, Joanna.

para Rafael Koehler

Eles se conheciam como uma árvore conhece um regador. Olhavam um para o outro, os olhos de um no corpo do outro, até que em uma tarde cinza se convidaram (o corpo de um ao corpo do outro) para o quarto que apenas um deles conhecia. Não disseram nomes (era como se nomes não houvesse), nem ofereceram ao corpo um do outro (no cálice dos lábios) qualquer vinho. Jogaram no chão os frutos podres das roupas caras. Nus, procuraram no corpo um do outro o melhor encaixe. No quarto que apenas um deles conhecia os dois tremiam em convulsões repentinas, a baba pegajosa da boca não colando o tórax nas costas (contra a qual ele, o tórax, repetidamente arremetia). Estavam sós em uma esquina de suores e gemidos tentando, em estocadas cada vez mais fundas, pescar no mar dos tubos algo para o próprio almoço. A fome gritava nos estômagos. As pernas enlaçadas eram prisão e não abraço. Prisão. As pernas enlaçadas eram para impedir que o primeiro fugisse sem deixar aquilo que o segundo buscava. No gozo segurado para que não chegasse antes do sono; no gozo que não podia sair porque gozar, ali, era perder muito de si sem ter recebido do outro nenhum tesouro; no gozo que, se viesse, os afastaria; no gozo jorrando no carpete gasto afogando os ácaros; naquele gozo, eles não estavam. Aquele gozo era leite saído de nenhuma vaca. No adeus do sexo mais solitário que se permitiram, um deles calou um beijo desafinado, o outro saiu mais triste do que uma esfiha fria.

Beijos.

sexta-feira, 28 de março de 2008

esperando por amanda


Em abril, 'Volúpia' em Blumenau. Informações sobre a estréia em Curitiba em http://www.ciacarona.com.br/.


Este é o início de um livro que jamais será escrito. Eu me chamo Roberto Augusto Foster. Moro em uma casa de alvenaria no centro de Aguardo. A rua em frente à casa é movimentada. Na manhã de hoje eu contei dezenove pessoas caminhando sobre a minha calçada. Dez me cumprimentaram. A verdade é que eu estava sentado em uma cadeira no vão da porta esperando que ela voltasse. Esperando por Amanda.
Se estivesse aqui, a esta hora, começo de tarde abafada, Amanda estaria no sofá xadrez da sala. O ar quente acariciando o suor em seu rosto. Ela insistindo para comprarmos o ventilador em promoção na loja que o seu tio gerenciava. Eu, bravo. Irritado. Eu, bravo, mas não triste. Não aguçando ouvidos e sorrisos para os passos que se aproximavam e que não seriam dela. Eu sabia que Amanda havia partido. E eu sabia que eu esperaria por ela naquele vão de porta até que alguém me levasse à força para um hospital ou um asilo. Porque eu estava velho. Sessenta e cinco anos. Mas não era assim que seria o livro.
Amanda veste a camisola branca curta. Dobrou três vezes o papel de presente para não fazer muito volume. Guardou-o sob o colchão. No espelho virado para a cama eu vejo Amanda ficando menor. Os seus lábios tocam a minha testa e eu não tenho como não pensar em bandeides colando rugas. Cada beijo de Amanda é como se fosse uma semana a menos. Como se o mundo girasse ao contrário. Amanda é um remédio que funciona. Ela dança descalça no piso frio. As laterais dos pés ficam mais claras quando encostam nos azulejos do quarto. Eu presto atenção nos seus pés. Amanda não se incomoda com isto e continua dançando como se a dança mais sensual fosse um simples ondular do corpo. Amanda tem vinte e três anos. Mas não era assim que seria o livro.
Eu comprei Amanda de seu tio por mais ou menos o que hoje vale uma tv em cores. Achei caro, mas o tio, acostumado aos negócios, não arredou pé. Quando soube que eu sonhava em escrever, me deu duas bics de lambuja. Uma eu perdi. A outra foi gasta nas páginas ásperas das palavras cruzadas. Não perguntei se Amanda era virgem. Mas era. Não perguntei se o trato era pra sempre. Mas era. Os negócios em Aguardo são pra vida toda. Amanda sabia. Mas não quero escrever sobre isto.
No momento em que a mulher abre o coração do homem e diz ‘vem que eu serei tua’, não tem mais volta. Mesmo que se pague por esta frase. Se Amanda estivesse aqui, sentada no sofá da sala, eu começaria o livro assim. É uma boa abertura.
Ela era feliz. Mesmo ontem quando, na novela, viu o mocinho fugindo de casa da vó tirana gritando ‘tu não tens o direito de me prender. A minha vida é sagrada’, ela estava feliz. Tá certo que chorava. Mas, e daí? Perguntei se ela preferia se deitar, que eu cuidaria dela, que não forçaria nada, que faria apenas se ela quisesse, mas que talvez fosse bom pra ela fazer, talvez fosse bom um sexozinho pra espairecer. Mas ela disse que não precisava. Que estava tudo bem. Que ela era feliz. Seria essencial mostrar, já nos primeiros capítulos do livro que nunca será escrito, o quanto Amanda era feliz. E as pessoas entenderiam que aquela era uma vida de sonho. Porque era sobre vidas de sonhos o livro que nunca será escrito.
O que não apareceria nem como sugestão, o que de maneira nenhuma apareceria, seria um homem no vão da porta da frente da casa, sentado em uma cadeira, olhando pras pessoas que andam na calçada, esperando pela mulher, com os olhos inchados de sono e cachaça, com uma faca escondida na mão.
Se Amanda estivesse sentada no sofá xadrez da sala, o livro começaria assim: Eu me chamo Roberto Augusto Foster. Moro em uma casa de alvenaria no centro de Aguardo. A rua em frente à casa é movimentada. Na manhã de hoje eu contei dezenove pessoas caminhando sobre a minha calçada. Dez me cumprimentaram. A verdade é que eu estava sentado em uma cadeira no vão da porta esperando que ela voltasse. Esperando por Amanda. Quando eu percebi os seus passos, a minha angústia passou. Amanda era a minha vida. Ela sabia disso. Por isso tenho certeza de que Amanda jamais me abandonaria.

beijos

segunda-feira, 24 de março de 2008

de solidão em solidão


De solidão em solidão
Nas coisas que não se concluem, nas coisas que ficam, nas coisas que vão
Andamos na busca, nos bosques, à cata no lixo, nas luzes dos postes
De solidão em solidão
Que o papel que nos for dado
De solidão em solidão
seja tocado, cheirado, deglutido
Sentido com todos os sentidos
A dor, se houver, que doa fundo
Que o riso ecoe, que o canto grite, que arda o desejo, que em silêncio tudo cale
Que o prazer seja o que prazer quer ser e que o amor seja o que ele conseguir
Para que quando morrermos morramos fortes, firmes, tanto faz se sós ou não, felizes ou infelizes
E que nenhuma linha da vida, entre solidão e solidão, seja esquecida

sexta-feira, 14 de março de 2008

lágrimas em cálices, rodo para o choro


Este é um texto parado, onde nada acontece. Sem metáforas. Um texto lago. Um texto poça. Partindo da foto, o texto não anda. Como um maratonista incapaz, o texto não corre. Como um avião sem céu, ele não voa. É um texto foto. Para ser amassado e esquecido nas páginas emboloradas de um velho álbum de retratos.

O faxineiro dorme em algum canto do cenário, longe da lente da Cannon. Não tem nome. O faxineiro não tem nome. O faxineiro tem rosto, mas não o vemos. Tem voz, mas não fala (nem ronca). Tem vontades, mas elas estão escondidas pela cortina do sono. O rodo (apoiado bêbado na moldura da foto) cruza a única perna de encontro ao ralo. Uma janela (fechada) sugere uma saída (fechada), mas a janela que se vê não tem vida, é apenas reflexo de uma outra que se supõe, de uma outra que, como o faxineiro, talvez durma em outro local que não o do papel do retrato. As águas (exceto por um dos cantos) estão paradas (como vinho deixado no cálice, como lágrima restrita ao olho). No pequeno ângulo em que se agitam (como lágrima que mancha a gola da camisa do namorado, como vinho pintando o lábio que recusa o beijo), as águas mudam somente a textura, não mudam o curso, não se empurram em direção ao ralo como uma multidão que necessitasse de espaço. As águas da foto não se acotovelam. As águas da foto se agitam em um dos cantos, mas logo se aquietam. As águas da foto são irmãs do fotógrafo. O fotógrafo e as águas poderiam usar os mesmos vestidos. Iguais a ele (ao fotógrafo), elas parecem não existir. Porque rodo há (que o vemos). Ralo há (cortando a foto como um cinto grosso corta a cintura de um vaqueiro). Janela também (não para ser tocada. Mas ali está. Fechada). O faxineiro (mesmo que em suposição) é crível. Mas, nas águas, eu creio (e logo delas me torno descrente) apenas no canto em que se agitam. E, no fotógrafo (é alguém? Onde está?), em lugar nenhum eu acredito.

Foto e texto sem beijos.

segunda-feira, 10 de março de 2008

pés para os pés de uns e patas para os pés de outros


oi, gente.
'Volúpia' estará em Curitiba nos dias 20 e 21 deste mês. 'Aguardo' deve ser finalmente lançado em abril. E a fauna continua.


A criança montava o cavalo como se o cavalo fosse uma nuvem em um sonho. Descuidada (os pais apavorados erguiam braços e gritos perdidos na linha do horizonte), a criança tinha a pele do rosto esticada pela velocidade da corrida. O cabelo loiro e fino voava na mesma direção da crina, ambos ficando um tempo ainda onde o rosto da criança e o rosto do cavalo (porque aqui não faremos diferença de espécie, não diremos focinho para uns e face para outros, não diremos pés para os pés de uns e patas para os pés de outros, não diremos tampouco lombo para um deles apenas, nem instinto para apenas uma das partes, seja o cavalo, seja o menino) ficando ainda um tempo onde o rosto do cavalo e rosto da criança já não mais estavam. Os pais do menino, donos do sítio, donos do cavalo, dono do menino, preocupavam-se com os três. Com o cavalo, pelo preço. Com o sítio, por hábito. Com a criança, por amor. Chamaram os bombeiros e a polícia para resgatar o menino, para parar o cavalo, para frear a corrida. A mãe chorava (os braços permanentemente erguidos como se cutucando um deus sonolento para que não dormisse). O pai chorava (os olhos secos como se cada lágrima que caísse pudesse atrapalhar o sono divino). Cada um chorava com as suas crenças, abraçado a elas, embalando-as, ninando as crenças na impossibilidade de ninar a criança que voava descuidada levada pelo cavalo. Chegaram polícia e bombeiros e, ambos, bombeiro e polícia, sirenes seguindo o trotar de cavalo e menino, os seguiram. E ambos, polícia e bombeiros, os pegaram. E ambos, menino e cavalo, voltaram. E ambos, bombeiro e polícia, receberam beijos e honorários. E ambos, pai e mãe, sorriram. E ambos, cavalo e menino, estão presos em seus lugares, em suas baias (porque aqui não faremos diferença de castigo. Correr é correr para cavalo e menino. Estar preso é o mesmo para menino e cavalo. A foto que encabeça o texto é a foto do menino. No porta retratos ao lado da cama dos pais pode-se ver a foto do cavalo).


beijos da criança (ou do cavalo)

sábado, 1 de março de 2008

entre as certezas do que estaria por vir e as certezas do que nunca virá


Oi, gente.
O bicho agora sou eu.

O homem chamado Gregory (que não é este Gregory que escreve) não tem palavras. O homem chamado Gregory olhou nos olhos baços de todas as palavras, em todos os dicionários, nas placas, nas frases dos poetas, nas afirmações categóricas das religiões, nos sussurros infantis aos pés de ouvidos apaixonados, em gemidos, em carícias letradas, em frases imaginadas (frases nunca ditas. Frases caladas), e nos olhos baços de todas as palavras o homem chamado Gregory nada viu. O homem chamado Gregory olhou para a estrada e depois para os pés e viu furos no solado gasto do sapato. Furos que eram furos. Apenas furos. Nenhuma outra significação. E o homem chamado Gregory (que não é este, que não sou eu) fuçou através do passado como um cachorro a procurar na podridão do lixo um naco perdido de carne no osso, mas o osso do passado do homem chamado Gregory estava roído. O passado do homem chamado Gregory (e não o meu passado lindo, maravilhoso - risos) estava em algum lugar entre o lixo e o domingo. Entre promessas plantadas e dívidas. Entre rezas e vômitos. Entre as certezas do que estaria por vir e as certezas do que nunca virá. E ele, o homem chamado Gregory (de novo afirmo que outro, não eu), procura nas gavetas da cozinha pelo remédio que não encontrará. Pelo remédio que ele, médico, sabe que não existe. O homem chamado Gregory vai ao banheiro e vê no espelho um terceiro homem (o primeiro sou eu, este que escreve) de mesmo nome, de mesmo rosto. Mas o terceiro homem está sereno. O terceiro homem está quieto. O terceiro homem, decerto também Gregory o seu nome, permanece grave. Pede silêncio. Coloca o indicador fino sobre os lábios. O terceiro homem aponta ao seu lado, dentro do espelho, um corpo tombado. Entende-se o motivo da gravidade. Há um morto. E o morto está coberto. O lençol que cobre o corpo é erguido por um vento súbito que foge da boca do terceiro homem. E na face do homem morto, do homem preso no espelho junto com o reflexo do homem chamado Gregory, eu me reconheço. Nenhum de nós quatro (eu que escrevo, o homem chamado Gregory, o reflexo do homem chamado Gregory, o morto em quem eu me reconheço) fala nada. Nenhuma palavra. Nenhum texto. Nenhuma poesia. Nenhuma rima. Nenhum riso. Nenhum grito. Porque até o desespero de todos nós quatro é calmo. Não há agito. Os quatro permanecemos como estátuas nos lugares marcados, esperando sabe-se lá o quê, sabe-se lá de quem. Sabemos que ainda não veio. Sabemos também que não vem.

Quatro beijos calmos. Quatro beijos meus.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

carregando a vida nas costas como se a vida fosse uma mochila da Adidas


Oi, gente
Depois de mais um longo tempo de ausência (com duas desculpas de peso: menos de um mês para estréia de ‘Volúpia’, peça nova da Cia Carona; menos de um mês para o lançamento de ‘Aguardo’, meu primeiro livro) volto para o zôo. Hoje homenageando a menina que ri, a quem eu conheço tão bem, que faz parte da minha vida, que me ajudou e ajuda a construir a minha história. Beijos, menina que ri, minha melhor amiga. E que, neste beijo e nesta homenagem, todos os meus grandes amigos se sintam homenageados e beijados. Amo vocês.

Querida amiga formiga, escreve a menina que ri, não te cansas com esta folha maior que o corpo? A menina que ri carrega, nas costas, a vida, como se a vida fosse uma mochila da Adidas. ‘Sim, a formiga se cansa’, respondo eu, zelador desse zôo de bichos estranhos, para a menina que está em vôo. A formiga, morra ou não, chore ou não, tenha dores nas juntas, na coluna inexistente, nos joelhos que não tem, segue em frente. A formiga segue sem plano, sem estratégia de guerra, sem cantil à mão porque a formiga sente (sente?) que a folha nas costas não é só peso, não é só cruz, não é só fardo, é também sombra, é também presente. E eu, zelador desse zôo maluco, que conheço a trilha da formiga (porque larguei a câmera e olhei e olhei e olhei) e só pressinto a estrada da menina (porque ainda caminha), sei que ambas só não são mais amigas porque estão longe. E se não tirei uma foto da formiga sem a folha é porque depois de a folha ter caído e do sonho ter se realizado (para trás ficando o cansaço, a trilha longa, os músculos exaustos) é do percurso e da folha que a formiga melhor se lembra. É da flor e do percurso que a formiga tem mais saudades. É com a mochila da Adidas carregada com o peso da vida que a menina que ri vai sonhar.
O coração da menina que ri às vezes dispara. É porque esteve muito tempo morno, parado. O disparar do coração da menina que ri é como o suor na testa da formiga amiga: confidência, metáfora, poesia. Hoje, a formiga descansa na calma da sua casa. A menina que ri, melhor amiga, família, ainda está na estrada. Carregando nas costas a vida como se a vida fosse uma mochila da Adidas. A menina que ri escreve para a amiga formiga: não te cansavas com esta folha maior que o corpo? ‘Sim’, eu respondo. ‘Não’, diz a formiga. ‘A folha era uma parte minha. Era como o meu olho’. A formiga pisca o olho (ou a folha) esquerdo. E retribui o sorriso da menina.

A pedido da amiga formiga, envio seus beijos e sorrisos.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

o bichinho horroroso da ponta do dedo


Oi, gente
Mais um, antes que a fauna acabe.



Nada no mundo era mais feio do que o bichinho horroroso da ponta do dedo. Problema de nascença. A mãe, identicamente feia, morrera no parto. Criado por tios-avós bêbados, o bichinho horroroso da ponta do dedo nunca foi popular. Na escola, o bichinho horroroso da ponta do dedo sentava sozinho. O seu primeiro beijo ele teve em sonhos, e desde lá não teve mais nenhum. O bichinho horroroso da ponta do dedo descobriu a masturbação como uma mulher ansiosa descobre o cigarro. E com a masturbação descobriu a acne e as câimbras na mão. E, com a acne, o bichinho horroroso da ponta do dedo conseguiu uma superação: ficou mais horroroso ainda. Foi ao médico e o médico desmaiou. A curandeira dispensou honorários e fixou na porta do barraco em que atendia um recado breve: ‘fechado para nunca mais abrir. Dom renegado’. A farmacêutica sugeriu, olhos cerrados, eutanásia. Foi exorcizado pelo bispo, que chamou o papa. Foi exorcizado pelo papa. Mas um belo dia, manhã sem nuvens, o bichinho horroroso da ponta do dedo ousou olhar para o mundo com olhos de bichinho normal, sem as lentes da sua feiúra. E o bichinho horroroso da ponta do dedo viu que o céu era azul e o mar também. E o bichinho horroroso da ponta do dedo pensou que poderia ser feliz e que poderia voar e que poderia fazer filhos no útero que desejasse, na fêmea que escolhesse, do modo que lhe aprouvesse. E o bichinho horroroso da ponta do dedo roubou do armário velho de uma mercearia a faca sem ponta da dona capenga. E o bichinho horroroso da ponta do dedo esperou em um beco pelo útero que desejou, pela fêmea que escolheu. E, do modo que lhe ocorreu, o bichinho horroroso da ponta do dedo apertou contra as costas da fêmea a lâmina cega da faca roubada. Mas, de um jeito que surpreendeu o bichinho horroroso da ponta do dedo, a fêmea reagiu e agarrou a faca. Atônito, surpreso, estático, o bichinho horroroso teve o rosto cortado. E pela segunda vez na vida e nessa história o bichinho horroroso da ponta do dedo conseguiu uma superação: ficou mais horroroso ainda. O que se fala da morte do bichinho horroroso da ponta do dedo é que morreu sozinho, velho, com o rosto enfaixado. Isso é o que se fala, porque da morte do bichinho horroroso da ponta do dedo ninguém sabe nada.

Beijos feiosos deste bichinho

domingo, 10 de fevereiro de 2008

aqui, sem pouso, é a tua casa


Oi, gente.
Desculpem a ausência prolongada. Trabalhando em ‘Volúpia’ (com todos os sentidos que essa frase possa conter), a peça nova da Cia Carona. Acabando ‘Aguardo’, meu primeiro livro (que deve ser lançado no início de março). E feliz. Feliz por vários motivos, e entre eles por ontem ter visto o ensaio aberto (é assim que foi chamado, Dani?) de ‘A Casa do Sótão ao Porão’, da Cia Experimentus, de Itajaí. A melhor coisa que eu vi em muito tempo. Singela mas sem medo de ser ousada. Metalingüística sem ser hermética. Respeitosa sem ser chata. Fiquei emocionado (o que é raro). Interagiram comigo durante o espetáculo (o que odeio) e curti. Inveja boa de vocês, guris (Dani, Sandra, Jô, Marcelo). E um orgulho colossal por conhecê-los. Obrigado pelo que me causaram.
E retornando à fauna, com vocês (rufar de tambores desafinados): Spoleta, a borboleta.



Como um homem que trocasse de pára-quedas durante um salto, Spoleta parava em galhos (mas não era ali, não era em galhos), parava em postes (também não, não era em postes), em calhas (tampouco em calhas), telhados (as telhas escorregavam), varais (tremiam), janelas, piso térmico, folhagens (transparência, comodidade, ecologia), mas Spoleta, a borboleta, assim como o homem em queda, ainda caía. Até ontem não estava apavorada. Até ontem Spoleta escolhia o pára-quedas pela cor, pelo conjunto, pela harmonia, pela textura. Acreditava em lares. Acreditava no dia em que, olhando entre as folhas da bananeira, reconheceria o lugar da futura casa. Spoleta, a borboleta, acreditava em pousos, na morada predestinada. Não era burra, a Spoleta. Se foi careta, foi uma única vez aos doze ou treze quando estava em crise. Aquela crise havia passado. Agora Spoleta sentia um leve aperto entre as asas, um desequilibrar no vôo, mas seguia procurando um pára-quedas com o nome de casa. Mas ontem, de repente, levada pelo vento na praia, Spoleta chorou. Desesperada não compreendeu a brisa que a carregava. Spoleta ouvia um uivo cochichando macio na antena esquerda ‘esquece calhas, telhas, postes, fios. Aqui, Spoleta, sem pouso, é a tua casa’. E Spoleta teve medo de cair. Mesmo com medo e sem pára-quedas, Spoleta conseguiu. De ontem até hoje não caiu. Até hoje não caiu. Até hoje não caiu.

Beijos sem pouso de Spoleta, a borboleta sem casa.

sábado, 26 de janeiro de 2008

estilingues e pedras e passarinhos


Oi, gente.
Trabalhando bastante na peça nova da Cia. Carona e na revisão de meu primeiro livro, Aguardo (que deve ser lançado no final de fevereiro ou começo de março). Aí vai mais um bicho e a foto dele, do Bruninho.


Bruninho, o bichinho da árvore, grudou-se ao caule no exato lugar onde não havia espinhos. Não sabia voar, o Bruninho. Era do tamanho do polegar do único filho dos donos do sítio. O menino, medroso, passava por Bruninho e não o via, preocupado que estava com aranhas e cobras e estilingues e pedras e passarinhos. Bruninho não tinha medo. Protegido do vento pelo caule, das chuvas pelas folhas, de ataques pela barricada natural da árvore, Bruninho, o bichinho, estava feliz e seguro, forte e saudável, belo e perfeito, calmo e disposto. Bruninho conhecia o momento exato em que o sol surgia, sabia dos presságios de trovoadas, identificava os pios e os gemidos de cada um dos outros bichos, sabia dos sinais de acasalamento de fêmeas e machos, conhecia o melhor horário para fechar os olhos e dormir e o melhor momento para despertar com o corpo saciado. Bruninho observava o menino passeando pelo mato. Observava o menino se machucando e, observando o menino se machucando, percebeu o quanto o menino se machucava. Foi picado. Mordido. Cortou o pé. Trincou a unha. Teve a pele arranhada. Quebrou uma perna e dois braços e mais alguns ossos esparsos e Bruninho estava intacto. Bruninho nunca `quase morreu`. Quando Bruninho morreu foi de uma vez. Sem os espirros da pneumonia. Sem os lapsos da velhice. Sem os ais das dores. Sem os xaropes receitados pelas tias. Morreu assim de repente como um paralelepípedo morre ao ser amassado pelo pneu do primeiro carro. O menino, adulto, mostrou à mulher os caminhos que correra naquele mato. Mostrou as marcas nas pernas, as cicatrizes, os machucados. A mulher sorriu um sorriso apaixonado. Não viram Bruninho na árvore para a qual apontaram. Não perceberam a carcaça de Bruninho agarrada ao caule, o marrom da morte de Bruninho agarrado ao caule. E embaixo daquela árvore transaram.


Beijos sem gosto de Bruninho, o bichinho da árvore.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

o coração de adão


Oi, gente.
A fauna de Aguardo me empolgou. Catei fotos de viagens antigas e descobri essa aí, de Adão, o cachorro, e de seu galho.



Era dourado e seguia o dono (um dono de quem conhecia somente as botas). O pedaço de madeira preso na boca como um palito gigante de limpar os dentes atrapalhava a alimentação, mas ele, Adão, não se importava. Rosnava se alguém ameaçasse roubar-lhe o galho. O dono (de quem Adão conhecia apenas o assovio agudo), passos indecisos de bêbado, marcha cambaleante, tropeções, era o guia. Adão, cachorro treinado, abanava o rabo. Como a bíblia para um devoto, como a aliança para um recém-casado, Adão, o cão, levava o galho. Como se fosse fidelidade, como se fosse dinheiro, como se fosse qualquer outra verdade, Adão, o cão, guardava o galho. Como se aquilo fosse a mulher dos sonhos ou a cadela no cio, Adão amava o galho. O galho era o fio que unia cão e dono. Era o coração de Adão. Babando enquanto bebia, roncando em sono pesado, ali, preso aos dentes, estava o galho. Caçando perdizes, correndo no campo, ali, entre os dentes, se via o galho. O tempo passando, passando meses, passando anos, Adão firme seguia o dono com o galho amassado entre os lábios. O dono (de quem Adão já conhecia cheiros, medos, fomes, anseios) morreu em uma madrugada fria. Na madrugada mais fria daquele ano frio. O funeral foi discreto: uma pá e um padre. Na madrugada mais fria daquele ano frio, Adão, o cão, soltou o galho. E Adão, o cão, tendo soltado o galho, ficou parado. Não sabia mais o que era frente, o que era trás, o que era lado.

Beijos tristes de Adão, o cão sem galho.

domingo, 20 de janeiro de 2008

iracema


Oi, gente.

Mais um texto da fauna de Aguardo. Mais um texto da minha fauna. Por favor não tenham raiva de Iracema porque eu também sou ela.



Iracema, a hiena, debruçada sobre o muro amarelo que separa o seu terreno do restante do mundo, solta a sua gargalhada de caninos. Protege a propriedade, o que ela tão exaustivamente conquistou, os tijolos escondidos por quilos de argamassa, os vitrais coloridos, as estantes forradas de livros. Iracema, as tetas murchas nunca sugadas, rosna para o padeiro que passa, xinga os colegiais em seus uniformes azuis, ergue o dedo médio a cada beijo que percebe de um novo casal de namorados. Trouxe a cama para a varanda, abraça a arma como a um amante saciado (amante que nunca teve e a quem nunca saciou), coça ali entre os pêlos secos do meio das pernas e não sente nada. Iracema, a hiena, cuida bem de tudo. Espana o pó da casa inteira dia sim dia não e, dia não dia sim, passa um pano molhado no chão. Iracema, a hiena, cimentou o buraco que nunca usou. Achou melhor. Pensou `tudo o que não tem uso merece um fim`. Iracema ajusta o despertador para as seis horas, toma um banho breve com sabão neutro e água fria, prepara torrada e suco de laranja para o desjejum, caminha ligeira em uma das três esteiras da sala, depois troca de esteira e corre. Iracema ainda troca mais uma vez de esteira e nesta, na terceira esteira, quase voa, quase morre. Com o lado oposto ao da unha vermelha que foge do indicador direito mede o pulso. Batimentos conforme o prescrito pelo médico, pelo fisiologista, pelo esteticista, pelo nutrólogo. Almoço, tarde, música leve, solo de flauta, vestido bonito, sapato de salto. Iracema está pronta para proteger a casa. Debruçada sobre o muro amarelo que a separa do mundo ela gargalha, ela xinga, ela ralha. O padeiro que passa, os colegiais em seus uniformes azuis, o novo casal de namorados mal percebem. Apenas mudam de calçada. Iracema, a hiena, deitada sobre o colchão ortopédico, abraçada ao duplo cano da espingarda, fecha os olhos e tenta dormir. Amanhã Iracema precisa acordar e fazer tudo de novo. Tudo de novo. Amanhã Iracema precisa fazer tudo de novo. Iracema, a hiena, sabe que tudo que não tem uso merece um fim. Assim é o mundo, pensa Iracema, acha Iracema, sabe Iracema. Para Iracema, o mundo ser assim não é um problema.

Beijos com a saliva e os lábios de Iracema.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Liloca era o que Liloca foi



Oi, gente. Cansado de fórmulas. Cansado de respostas. Da infinidade de respostas que exigimos para dar um passo. Cansado de certezas, todas parciais, todas criadas, todas destruídas. Nem por isso triste. Não quero entender nada. Quero a taça transbordando de qualquer coisa. Da coisa que eu não sei o nome eu quero só o gosto. Igual a Liloca, a minhoca:


Liloca, a minhoca, cavava a terra como quem dorme. Vivia nos dois metros quadrados de uma horta de alface em Aguardo. Liloca era um tubo marrom de menos de 10 cm, mole, frouxo. Não sei o que comia (não me interessei em pesquisar nos livros de biologia) e tenho certeza que ela, a minhoca, também não sabia. Sabia rastejar, lentamente, criando túneis da largura do seu corpo que, em uma semana ou duas, colabariam (suponho). Liloca entrava e saía numa interminável orgia com o barro, sem ápice, sem êxtase, sem clímax. Dizem que ajudava na plantação, mas Liloca, indo e vindo, entrando e saindo, não tinha intenção, não tinha vontade, não respondia a questionários sobre os motivos da escavação (nada sei da psicologia destes bichos). Liloca era uma minhoca. Nada interessava mais a Liloca do que ser uma minhoca. Não a rainha das minhocas. Não a poeta das minhocas. Não outra coisa além ou aquém, acima ou abaixo, melhor ou pior do que ser uma minhoca. Liloca morreu da mesma forma que viveu. Sem alarde. Não houve eclipse. Trombetas não soaram. Morreu amassada pela borracha da sola de um sapato junto com outras três. Não houve funeral. As minhocas restantes não choraram. Liloca era o que Liloca foi. Nenhum futuro para o espírito de Liloca (não me interessei em estudar a teologia das minhocas). Nenhuma mágoa de Liloca pelo que deixou de fazer. Nenhum plano de Liloca havia sido frustrado. Nenhuma queixa de Liloca foi ouvida quanto ao peso do sapato. Ninguém se lembra de Liloca. Nem ela (que morreu), nem eu.


A foto aí de cima é uma das que eu mais gosto. Foi tirada em Toronto, no início deste ano. Dei o nome de `Colombo, o pombo`. Depois daquele breve instante nunca mais vi Colombo.

Inveja imensa de Liloca, a minhoca, e do pombo Colombo. Não pela morte ou pelo desaparecimento de ambos. Inveja do que eram ou são.
beijos

sábado, 12 de janeiro de 2008

sem título

oi, gente.
ainda estou me familiarizando com esse negocio de blog. prometo melhorar.
o texto do primeiro dia, sobre liberdade, faz parte do processo de montagem do novo espetáculo da Cia. Carona de Teatro, `Volúpia`, que deve estrear ainda neste semestre. a direção é de Pépe Sedrez.
essa poesiazinha aí embaixo, sem título, é de ontem e hoje. não é de nada, nem tem função nenhuma, como eu acho que todo texto deve ser.
Se o que me é dado é tristeza
Que a tristeza seja opaca e cinza como a neblina
E que tenha lágrimas e soluços e tardes frias e noites longas e pés molhados em estradas de barro.

Mas se o que me é dado é esperança
Que ela seja um raio que rasgue o céu pesado do meu peito
Que ela ouse minimizar a dor como um infarto ousa interromper a vida
Que ela crie (mesmo que em seguida apague) uma frase, uma letra,
e em alarde (madrugada plena) grite “é manhã, querido, olha o sol, menino, já é tarde”.

Se o que me é dado é dor
Que doa e arda e esmague
Que caminhões recolham os meus gritos jogados fora em sacos de lixo
Que se amontoem os meus ferimentos rivalizando com os prédios mais altos da cidade
Que seja servida à mesa a minha angústia
Que os cortes da minha carne sejam mastigados com pressa (garçom aguardando a gorjeta, taxista esperando o embarque).

Mas se o que me é dado é paz
Que seja como a espuma da derradeira onda antes do primeiro homem chegar à praia
Ou como o galho da árvore antes do ninho
Ou como o lençol antes da insônia ou a taça antes do vinho.

Se é ódio o que me é dado
Que se lance do meu revólver a bala que aleijará a mais inocente criança
Que o carro não freie e que o grito não cale
E que o meu ódio indócil, sedento, não seja contido, não seja algemado
Que o meu ódio sedento, indócil, seja a mandíbula do cão contra a pele da moça
A doença que se esparrama no sofá das entranhas
A mosca que abençoa o cadáver
Que o meu ódio seja um estuprador se o que me é dado é ódio
E que eu vá às ruas com ódio estampado no rosto
Exalando ódio na fumaça suja do cigarro que eu trago, se é ódio o que me é dado.

Mas se for amor,
Se for amor o que me derem,
Que seja amor
Amor sincero
Amor sagrado.
beijos

domingo, 6 de janeiro de 2008

liberdade

‘Olha ali’, ele disse, e apontou para o horizonte que corria até os azuis de céu e mar se confundirem. ‘Lindo, não?’, ele perguntou. Lindo. ‘Como é que tu te sentes?’. Eu me sentia livre. O vento gelado escorria como lágrima em meu rosto. Eu estava virada do avesso, sem medo de gritar palavrões ou de parecer feia ou mesmo de estar sendo ridícula ali, parada no cume daquele desfiladeiro. ‘Te entrega’, ele sussurrou no meu ouvido. ‘Te entrega pra isso, pra essa sensação’. ‘Te entrega’. E eu fechei os olhos e senti as pernas bambearem e senti o vento pelo corpo todo como se o vento me levasse, como se eu estivesse voando, e sorri e o meu sorriso pareceu mais largo do que o habitual, mais sincero, mais verdadeiro. ‘Apaga os limites’, ele disse. ‘Todos os limites’, ele disse. ‘Todos os limites’. E eu apaguei os limites, todos os limites, e o meu sorriso começava na sola do pé e fugia para além de mim, para além do mar que eu sentia sem necessidade de observá-lo, sem necessidade de olhar. E ele falou, ‘vou te levar até aquela pedra, estás vendo?’. A pedra que ele mostrava quase se jogava para o precipício, quase caía. Depois da pedra havia ar e queda. Depois da pedra. E ele me carregou nos braços e me colocou com carinho sobre a pedra e me segurou porque o vento era forte demais e pediu ‘fica descalça’. A pedra era menos fria do que o vento. ‘Te entrega pra isso’, ele gritou para que eu pudesse ouvi-lo. Com os olhos fechados, com os pés sentindo as ondulações da pedra, com o corpo sendo embalado pelo vento, eu me sentia menor e maior, sem medo. ‘Te sentes livre?’, ele perguntou. ‘Totalmente livre?’. ‘É assim a tua liberdade?’. O rosto dele estava cerrado, as mãos dele apertavam os meus ombros. Empurrou-me para mais perto do penhasco. ‘É assim a tua liberdade?’. A minha liberdade era ar e queda, não era pedra. ‘Então te joga’. Naquele instante aquilo que parecia liberdade transformou-se em algo muito doloroso. De onde vinha o vento eu passei a perceber o frio. A pedra sobre a qual eu pisava começou a machucar os meus pés. Ele não era mais ele, a pessoa a quem eu amava, mas era ele, a pessoa que me prendia, que me impedia de sonhar o vôo de águias e andorinhas. O horizonte não era mais o sonho que se persegue mas o alvo que não se alcança. Ele falava ‘te joga’ mas eu não conseguia. E ele repetia ‘não te sentes livre?’ e eu não mais me sentia. E ele falava ‘isso tudo não é lindo?’ e aquilo tudo era horrível. E ele me deixou um segundo ou uma hora entre cair ou não, entre me jogar ou não, entre ele ou não, e depois veio e me abraçou forte e beijou a minha nuca e disse que me amava e eu acreditei e ele perguntou ‘vamos?’ e eu disse ainda não e fiquei ali, abraçada por ele e por várias impossibilidades, me sentindo pequena. Chorando e sorrindo. Triste talvez. Talvez não.