terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

a arte em que acredito


Cada vez mais percebo o quanto a arte que me toca é uma arte contestadora, uma arte não voltada para a sedimentação do que já é conhecido, uma arte não cômoda, não institucionalizada, não apenas bela. Tenho pensado que a arte deveria trazer em seu cânone alguns anti-mandamentos, opostos aos mandamentos bíblicos, sendo que o principal deles, na minha tendenciosa opinião, seria ‘mata o teu pai e a tua mãe’ (em oposição direta ao cristão ‘honra o teu pai e a tua mãe’). A necessidade imposta pela ordem ‘honra’ limita a criação àquilo que pode ser compreendido e reconhecido (sob forma de prêmios ou de aperto de mãos) pelos ‘pais’ (amigos, mestres, antecessores, sociedade, pares). A arte-honra é uma arte eternamente medrosa, dependente dos aplausos, escrava de lágrimas antecipadas. A arte-honra não ousa, ou quando ousa é tão ousada quanto um buquê de rosas enviado em um dia comum. A arte-honra é uma arte segura como uma aliança dourada no anular esquerdo. Não aceita traições.
A arte-mata, o avesso da arte-honra, não tem obrigações. A sua única obrigação é consigo mesma (como um corpo que reconhece em si intestinos e frieira tanto quanto alma e coração). A arte-mata caga. A arte-mata não deve satisfações à sociedade porque não nasceu dela e não é para ela que vive. A arte-mata não depende de parabéns e incentivo público e reconhecimento dos pares. Enquanto a arte-honra é o que criamos ao nosso redor para termos uma suposta segurança (patrimônio, casamento, crenças, planos de saúde, promessas), a arte-mata simplesmente é, como nós somos. Enquanto a arte-honra tem os olhos voltados para o amanhã, sempre querendo saber sobre que solo estará pisando, a arte-mata nada sabe do depois porque não é isso que lhe interessa. Não nega dores e ferimentos e erros e suicídios. Não nega nenhuma possibilidade. Nada lhe é proibido. É essa arte, a arte-mata, a única arte em que acredito.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

sobre cinema e benjamin 'gump'


Acabei de desistir, depois de 2 horas de música grandiloqüente, fotografia ‘linda’, lições de moral a cada 10 minutos e interpretações oscarizáveis, do filme de maior sucesso da temporada: O Curioso Caso de Benjamin ‘Gump’ (ou é apenas implicância minha perceber semelhanças entre este filme e Forrest Gump: narração em primeira pessoa por um personagem ‘abobalhado’ que é colocado em situações nas quais terá que lidar com perdas, guerras, mortes?). O que me levou a perguntar: onde é mesmo que está a VIDA no cinema atual (para não falar das demais artes)? Por que é que o cinema atual (que fique claro, o cinema para o grande público) nos trata como crianças? Por que é que o cinema atual precisa ‘poetizar’ tudo? (TODAS as cenas de suposto maior impacto dramático em Benjamin ‘Gump’ tem algo de ‘relevante’ a nos falar. TODAS as cenas de suposto maior impacto dramático em Benjamin 'Gump' são realçadas por uma trilha sonora de suposto maior imapcto dramático. Por exemplo, o capitão do barco está morrendo após ser alvejado na guerra mas ele consegue falar: ‘tem coisas que temos que aceitar’. E dá-lhe música para suposto maior imapcto dramático. Eu digo que a morte assim é fácil de aceitar. A morte pipoca e música e lágrimas fáceis é moleza. A morte ‘há um sentido para tudo isto’ é fichinha. A morte sem cheiro e sem gosto é a morte que todos nós desejaríamos). Acontece que a porra do cinema (e das demais artes) deveria nos levar a enfrentar os nossos demônios e não a maquiá-los para um passeio no supermercado. Acontece que a porra do cinema (e das demais artes) deveria ser o tapa na nossa cara e não essa merda de religião institucionalizada (aqui ouso uma pergunta: qual a diferença entre o cinema mainstream e as religiões? O que vejo é que ambos tentam ‘criar’ um sentido poético, belo, digerível, para questões que tendem as nos afligir. E digo que, entre as duas crenças, ainda prefiro a mais clássica e curta do Pai-Nosso). E acontece que a porra do cinema (e das demais artes) é a única coisa que nos resta para ampliar os nossos limites e não para estreitá-los nas únicas opções que atualmente ele (o cinema) nos permite: o ‘bonito’, o ‘poético’, o ‘correto’, o ‘explicável’, o ‘sensato’, o ‘digerível’. Chega desta bosta toda! Quero arte que surpreenda, que me mostre o que eu não vejo, que me faça sentir o que é incomum (que seja belo ou incômodo ou sujo, mas que seja de VERDADE), que me coloque contra a parede, porque para ratificar o que eu já conheço e espero eu já tenho a mim mesmo e as igrejas!

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

as pipas de Aguardo

De volta, mesmo que (de acordo com o post anterior) apenas uma bunda bonita.

Os pés firmes no chão, na outra extremidade de Rodrigo a pipa voava. Era na pipa que Rodrigo, por uma inversão absurda de perspectiva, se apoiava. Não soltava os pés nem se jogava da sacada de um edifício crendo que a pipa pudesse ser paraquedas. Não era tolo mais do que eu ou tu. Mas acreditava que era a pipa que o carregava. A pipa de Rodrigo, em um mundo repleto de pipas, em nada diferia das outras. Nem nas cores, nem na beleza, nem no vôo. Rodrigo caminhava, cumprimentava as pessoas por quem passava (cuidando para não enrolar o fio da sua com os fios das outras pipas: é sabido que fios de pipas nem sempre convivem bem. Há pipas inimigas. Pipas que riem de outras pipas. Pipas que competem entre si. Pipas tão sutis, quase teias de aranha, que negam a sua pipicidez – pipicidade? – mas que a um exame mais meticuloso definitivamente entre elas, pipas, se incluem) e as pessoas cumprimentavam Rodrigo de volta. No seu vigésimo aniversário, as pipas dos amigos se confundindo no céu com os balões da festa, Rodrigo recebeu em um embrulho uma tesoura e um recado breve ‘és tu quem a manténs, não ela que te segura’. Pensou que o texto anônimo se referisse à sua mãe, mas mesmo não entendendo como (a mãe era forte e lúcida) optou por não perder mais tempo. Abriu os outros presentes. Usou a tesoura para cortar alguns papéis e o recado foi reciclado. Morreu com 65 anos, casado, empresário honesto, 2 filhos, 3 netos, comungando religiosamente, feliz. A pipa foi usada como travesseiro e levada com o seu corpo, o corpo de Rodrigo, pelo trajeto inteiro da capela à terra, do alarido das últimas rezas à solitária companhia dos vermes. No céu de Aguardo, após a missa, dividiam o espaço pardais e pipas. Morreu acreditando que era a pipa que o mantinha em pé. Dizem que deu testemunho em silenciosas mesas brancas. Falava ‘carreguem as vossas pipas como eu carreguei a minha. É por elas que vossas almas não se farão perdidas ’. Rodrigo nunca desmontou a sua pipa, nunca a largou. Talvez a pipa, na mesa branca das pipas, comentasse com a lotação de pipas vivas ‘nunca larguem os seus Rodrigos. Foram eles que vos criaram. São eles que vos dão vida’.
Beijos de um moralista que odeia pipas (e que tenta encontrar os fios de todas as que carrega)

E (serão também pipas?) os melhores livros que eu li em 2008, na ordem aleatória da minha memória:

- O Mar (John Banville)
- A Estrada (Cormac Mccarthy)
- A Casa das Belas Adormecidas (Yasunari Kawabata)
- Ontem Não Te Vi em Babilônia (António Lobo Antunes)
- Austerlitz (W G Sebald)
- Paris Não Tem Fim (Enrique Vila-Matas) – os outros 3 dele que foram lançados no Brasil também são excelentes.
- Os Detetives Selvagens (Roberto Bolaño)

Últimos beijos.