sexta-feira, 28 de março de 2008

esperando por amanda


Em abril, 'Volúpia' em Blumenau. Informações sobre a estréia em Curitiba em http://www.ciacarona.com.br/.


Este é o início de um livro que jamais será escrito. Eu me chamo Roberto Augusto Foster. Moro em uma casa de alvenaria no centro de Aguardo. A rua em frente à casa é movimentada. Na manhã de hoje eu contei dezenove pessoas caminhando sobre a minha calçada. Dez me cumprimentaram. A verdade é que eu estava sentado em uma cadeira no vão da porta esperando que ela voltasse. Esperando por Amanda.
Se estivesse aqui, a esta hora, começo de tarde abafada, Amanda estaria no sofá xadrez da sala. O ar quente acariciando o suor em seu rosto. Ela insistindo para comprarmos o ventilador em promoção na loja que o seu tio gerenciava. Eu, bravo. Irritado. Eu, bravo, mas não triste. Não aguçando ouvidos e sorrisos para os passos que se aproximavam e que não seriam dela. Eu sabia que Amanda havia partido. E eu sabia que eu esperaria por ela naquele vão de porta até que alguém me levasse à força para um hospital ou um asilo. Porque eu estava velho. Sessenta e cinco anos. Mas não era assim que seria o livro.
Amanda veste a camisola branca curta. Dobrou três vezes o papel de presente para não fazer muito volume. Guardou-o sob o colchão. No espelho virado para a cama eu vejo Amanda ficando menor. Os seus lábios tocam a minha testa e eu não tenho como não pensar em bandeides colando rugas. Cada beijo de Amanda é como se fosse uma semana a menos. Como se o mundo girasse ao contrário. Amanda é um remédio que funciona. Ela dança descalça no piso frio. As laterais dos pés ficam mais claras quando encostam nos azulejos do quarto. Eu presto atenção nos seus pés. Amanda não se incomoda com isto e continua dançando como se a dança mais sensual fosse um simples ondular do corpo. Amanda tem vinte e três anos. Mas não era assim que seria o livro.
Eu comprei Amanda de seu tio por mais ou menos o que hoje vale uma tv em cores. Achei caro, mas o tio, acostumado aos negócios, não arredou pé. Quando soube que eu sonhava em escrever, me deu duas bics de lambuja. Uma eu perdi. A outra foi gasta nas páginas ásperas das palavras cruzadas. Não perguntei se Amanda era virgem. Mas era. Não perguntei se o trato era pra sempre. Mas era. Os negócios em Aguardo são pra vida toda. Amanda sabia. Mas não quero escrever sobre isto.
No momento em que a mulher abre o coração do homem e diz ‘vem que eu serei tua’, não tem mais volta. Mesmo que se pague por esta frase. Se Amanda estivesse aqui, sentada no sofá da sala, eu começaria o livro assim. É uma boa abertura.
Ela era feliz. Mesmo ontem quando, na novela, viu o mocinho fugindo de casa da vó tirana gritando ‘tu não tens o direito de me prender. A minha vida é sagrada’, ela estava feliz. Tá certo que chorava. Mas, e daí? Perguntei se ela preferia se deitar, que eu cuidaria dela, que não forçaria nada, que faria apenas se ela quisesse, mas que talvez fosse bom pra ela fazer, talvez fosse bom um sexozinho pra espairecer. Mas ela disse que não precisava. Que estava tudo bem. Que ela era feliz. Seria essencial mostrar, já nos primeiros capítulos do livro que nunca será escrito, o quanto Amanda era feliz. E as pessoas entenderiam que aquela era uma vida de sonho. Porque era sobre vidas de sonhos o livro que nunca será escrito.
O que não apareceria nem como sugestão, o que de maneira nenhuma apareceria, seria um homem no vão da porta da frente da casa, sentado em uma cadeira, olhando pras pessoas que andam na calçada, esperando pela mulher, com os olhos inchados de sono e cachaça, com uma faca escondida na mão.
Se Amanda estivesse sentada no sofá xadrez da sala, o livro começaria assim: Eu me chamo Roberto Augusto Foster. Moro em uma casa de alvenaria no centro de Aguardo. A rua em frente à casa é movimentada. Na manhã de hoje eu contei dezenove pessoas caminhando sobre a minha calçada. Dez me cumprimentaram. A verdade é que eu estava sentado em uma cadeira no vão da porta esperando que ela voltasse. Esperando por Amanda. Quando eu percebi os seus passos, a minha angústia passou. Amanda era a minha vida. Ela sabia disso. Por isso tenho certeza de que Amanda jamais me abandonaria.

beijos

segunda-feira, 24 de março de 2008

de solidão em solidão


De solidão em solidão
Nas coisas que não se concluem, nas coisas que ficam, nas coisas que vão
Andamos na busca, nos bosques, à cata no lixo, nas luzes dos postes
De solidão em solidão
Que o papel que nos for dado
De solidão em solidão
seja tocado, cheirado, deglutido
Sentido com todos os sentidos
A dor, se houver, que doa fundo
Que o riso ecoe, que o canto grite, que arda o desejo, que em silêncio tudo cale
Que o prazer seja o que prazer quer ser e que o amor seja o que ele conseguir
Para que quando morrermos morramos fortes, firmes, tanto faz se sós ou não, felizes ou infelizes
E que nenhuma linha da vida, entre solidão e solidão, seja esquecida

sexta-feira, 14 de março de 2008

lágrimas em cálices, rodo para o choro


Este é um texto parado, onde nada acontece. Sem metáforas. Um texto lago. Um texto poça. Partindo da foto, o texto não anda. Como um maratonista incapaz, o texto não corre. Como um avião sem céu, ele não voa. É um texto foto. Para ser amassado e esquecido nas páginas emboloradas de um velho álbum de retratos.

O faxineiro dorme em algum canto do cenário, longe da lente da Cannon. Não tem nome. O faxineiro não tem nome. O faxineiro tem rosto, mas não o vemos. Tem voz, mas não fala (nem ronca). Tem vontades, mas elas estão escondidas pela cortina do sono. O rodo (apoiado bêbado na moldura da foto) cruza a única perna de encontro ao ralo. Uma janela (fechada) sugere uma saída (fechada), mas a janela que se vê não tem vida, é apenas reflexo de uma outra que se supõe, de uma outra que, como o faxineiro, talvez durma em outro local que não o do papel do retrato. As águas (exceto por um dos cantos) estão paradas (como vinho deixado no cálice, como lágrima restrita ao olho). No pequeno ângulo em que se agitam (como lágrima que mancha a gola da camisa do namorado, como vinho pintando o lábio que recusa o beijo), as águas mudam somente a textura, não mudam o curso, não se empurram em direção ao ralo como uma multidão que necessitasse de espaço. As águas da foto não se acotovelam. As águas da foto se agitam em um dos cantos, mas logo se aquietam. As águas da foto são irmãs do fotógrafo. O fotógrafo e as águas poderiam usar os mesmos vestidos. Iguais a ele (ao fotógrafo), elas parecem não existir. Porque rodo há (que o vemos). Ralo há (cortando a foto como um cinto grosso corta a cintura de um vaqueiro). Janela também (não para ser tocada. Mas ali está. Fechada). O faxineiro (mesmo que em suposição) é crível. Mas, nas águas, eu creio (e logo delas me torno descrente) apenas no canto em que se agitam. E, no fotógrafo (é alguém? Onde está?), em lugar nenhum eu acredito.

Foto e texto sem beijos.

segunda-feira, 10 de março de 2008

pés para os pés de uns e patas para os pés de outros


oi, gente.
'Volúpia' estará em Curitiba nos dias 20 e 21 deste mês. 'Aguardo' deve ser finalmente lançado em abril. E a fauna continua.


A criança montava o cavalo como se o cavalo fosse uma nuvem em um sonho. Descuidada (os pais apavorados erguiam braços e gritos perdidos na linha do horizonte), a criança tinha a pele do rosto esticada pela velocidade da corrida. O cabelo loiro e fino voava na mesma direção da crina, ambos ficando um tempo ainda onde o rosto da criança e o rosto do cavalo (porque aqui não faremos diferença de espécie, não diremos focinho para uns e face para outros, não diremos pés para os pés de uns e patas para os pés de outros, não diremos tampouco lombo para um deles apenas, nem instinto para apenas uma das partes, seja o cavalo, seja o menino) ficando ainda um tempo onde o rosto do cavalo e rosto da criança já não mais estavam. Os pais do menino, donos do sítio, donos do cavalo, dono do menino, preocupavam-se com os três. Com o cavalo, pelo preço. Com o sítio, por hábito. Com a criança, por amor. Chamaram os bombeiros e a polícia para resgatar o menino, para parar o cavalo, para frear a corrida. A mãe chorava (os braços permanentemente erguidos como se cutucando um deus sonolento para que não dormisse). O pai chorava (os olhos secos como se cada lágrima que caísse pudesse atrapalhar o sono divino). Cada um chorava com as suas crenças, abraçado a elas, embalando-as, ninando as crenças na impossibilidade de ninar a criança que voava descuidada levada pelo cavalo. Chegaram polícia e bombeiros e, ambos, bombeiro e polícia, sirenes seguindo o trotar de cavalo e menino, os seguiram. E ambos, polícia e bombeiros, os pegaram. E ambos, menino e cavalo, voltaram. E ambos, bombeiro e polícia, receberam beijos e honorários. E ambos, pai e mãe, sorriram. E ambos, cavalo e menino, estão presos em seus lugares, em suas baias (porque aqui não faremos diferença de castigo. Correr é correr para cavalo e menino. Estar preso é o mesmo para menino e cavalo. A foto que encabeça o texto é a foto do menino. No porta retratos ao lado da cama dos pais pode-se ver a foto do cavalo).


beijos da criança (ou do cavalo)

sábado, 1 de março de 2008

entre as certezas do que estaria por vir e as certezas do que nunca virá


Oi, gente.
O bicho agora sou eu.

O homem chamado Gregory (que não é este Gregory que escreve) não tem palavras. O homem chamado Gregory olhou nos olhos baços de todas as palavras, em todos os dicionários, nas placas, nas frases dos poetas, nas afirmações categóricas das religiões, nos sussurros infantis aos pés de ouvidos apaixonados, em gemidos, em carícias letradas, em frases imaginadas (frases nunca ditas. Frases caladas), e nos olhos baços de todas as palavras o homem chamado Gregory nada viu. O homem chamado Gregory olhou para a estrada e depois para os pés e viu furos no solado gasto do sapato. Furos que eram furos. Apenas furos. Nenhuma outra significação. E o homem chamado Gregory (que não é este, que não sou eu) fuçou através do passado como um cachorro a procurar na podridão do lixo um naco perdido de carne no osso, mas o osso do passado do homem chamado Gregory estava roído. O passado do homem chamado Gregory (e não o meu passado lindo, maravilhoso - risos) estava em algum lugar entre o lixo e o domingo. Entre promessas plantadas e dívidas. Entre rezas e vômitos. Entre as certezas do que estaria por vir e as certezas do que nunca virá. E ele, o homem chamado Gregory (de novo afirmo que outro, não eu), procura nas gavetas da cozinha pelo remédio que não encontrará. Pelo remédio que ele, médico, sabe que não existe. O homem chamado Gregory vai ao banheiro e vê no espelho um terceiro homem (o primeiro sou eu, este que escreve) de mesmo nome, de mesmo rosto. Mas o terceiro homem está sereno. O terceiro homem está quieto. O terceiro homem, decerto também Gregory o seu nome, permanece grave. Pede silêncio. Coloca o indicador fino sobre os lábios. O terceiro homem aponta ao seu lado, dentro do espelho, um corpo tombado. Entende-se o motivo da gravidade. Há um morto. E o morto está coberto. O lençol que cobre o corpo é erguido por um vento súbito que foge da boca do terceiro homem. E na face do homem morto, do homem preso no espelho junto com o reflexo do homem chamado Gregory, eu me reconheço. Nenhum de nós quatro (eu que escrevo, o homem chamado Gregory, o reflexo do homem chamado Gregory, o morto em quem eu me reconheço) fala nada. Nenhuma palavra. Nenhum texto. Nenhuma poesia. Nenhuma rima. Nenhum riso. Nenhum grito. Porque até o desespero de todos nós quatro é calmo. Não há agito. Os quatro permanecemos como estátuas nos lugares marcados, esperando sabe-se lá o quê, sabe-se lá de quem. Sabemos que ainda não veio. Sabemos também que não vem.

Quatro beijos calmos. Quatro beijos meus.