sexta-feira, 26 de setembro de 2008

o silêncio no grito de todas as cores


para Mareike, com amor

Prestava atenção nos sons. Em todos os sons. No chiado intermitente das ondas que, feito um pedido de silêncio, feito indicador sobre os lábios, calava o espalhar de infinitos grãos de areia amassados pelos passos. No farfalhar das folhas secas deslocadas por algum bicho (lagarto? Cobra? Rato?) a uma distância segura do seu corpo. No vento suave que assoprava, nas pernas, um machucado inexistente. Nos gritos distantes de crianças que não eram as suas (porque não as tinha) e que chegavam mornos e curtos aos seus ouvidos (que estes sim, por serem parte inata do seu corpo e não algo que em seu corpo surgiria, os tinha). No crepitante ruído (que imagino, pois não os ouço. Os meus sons são outros) da pele crispada pelo sol. No piar de pássaros desconhecidos. Na voz da sombra que a abanava (que é diferente da voz abafada de lugares muito claros. Que é diferente da voz aguda dos lugares escuros). Prestava atenção nos sons porque tudo era música. Até o silêncio branco do sono era um silêncio composto por todos os sons, assim como o branco é o silêncio no grito de todas as cores. Dormia porque a música continuava. E, dormindo, desenhava com o corpo esguio uma nota nova na estranha partitura amarela e branca daquela cadeira de praia.

Beijos

sábado, 13 de setembro de 2008

outro do Eráclito


O homem estava sozinho. No seu passado, atrás de si (para onde conseguia olhar colando o queixo no ombro esquerdo e forçando bastante os olhos) havia caminhos, sorrisos, medalhas das lutas que ganhara contra monstros, contra insetos, contra outros homens mais fortes do que ele, contra si mesmo (e a si mesmo sempre vencera até aquele momento sem maiores dores, sem arranhaduras), mas dali onde estava até onde conseguia enxergar não havia mais nada, apenas o peso de uma vida transformada em vai e vens de dias e noites, de meses, de angústias incompartilháveis (não por serem as angústias não compartilháveis, mas por ninguém mais por elas se interessar), de sonhos solitários, de anátemas nunca pronunciados. O homem estava sozinho e pela primeira vez se deu conta do quão sozinho estava. Nada mais fazia sentido. Nem a vida. Nem a morte. E era por este motivo fútil que ele ainda continuava vivo. Por ser mais fácil. Menos trabalhoso. Mais digno.

Beijos

sábado, 6 de setembro de 2008

a lua que queres


Algumas pessoas vêm me perguntando sobre o Eráclito Borges e sobre como conseguiriam algo dele. O Eráclito foi um amigo meu, que faleceu em 2002, ainda novo (tinha 35 ou 36 anos, não me lembro ao certo). Conheci o Eráclito quando morei em São Paulo, e tomamos alguns cafés juntos perto do Espaço Unibanco de Cinema (saudades de lá). Nunca chegou a publicar nada mas, quando soube que estava muito doente e que dificilmente ‘alcançaria a idade dos pais que, graças a deus, não conheceu’ (palavras dele, inclusive o graças a deus, expressão que ele usava repetitivamente apesar de ser ateu ‘da cabeça aos pés’), deixou comigo uma pasta com alguns cadernos para que eu ‘fizesse o que eu quisesse’. É deste acervo que eu cato alguns textos aqui para o blog. As anotações de que mais gosto são de seu ‘Diário do Isolamento’, textos que escreveu durante um ano em que ficou totalmente sem comunicação com qualquer ser humano, morando em uma cabana sem eletricidade no meio do mato. Este aí embaixo é do Livro III, com data de 11 de janeiro de 2001. Penso em, no futuro, organizar e publicar alguns de seus textos.

para Jenifer Bonezzi (que me perguntou sobre o Eráclito)


Eu só tenho para oferecer o que já me disseste que não queres.
Posso até te criar cores que não são as do meu corpo, que não são as dos meus olhos, mas em pouco tempo desbotarão.
Posso até usar palavras que nunca uso, palavras que travam a boca pela total inépcia desta em pronunciá-las, mas elas (as palavras, as frases) nunca sairão conforme imaginas.
Posso até, feito personagem literário, escalar montanhas e voando nas asas dos pássaros trazer-te a lua, mas olharás para ela, para a lua, e tomá-la-ás na palma clara da tua mão e, examinando a lua, dirás que não é ela, que aquela lua que tens na mão não é a lua que mora no alto do céu, que aquela lua que tens na mão não é a lua que tanto brilhava nas noites escuras e nos sonhos românticos que te despertavam suada no meio da madrugada, que aquela lua que tens na mão é pura e simplesmente uma cópia fajuta comprada a prazo de uma loja em promoção.
A lua que queres tem a circunferência, a profundidade e o relevo do teu umbigo. Eu não posso te oferecer o que já tens. E o que eu tenho para oferecer já me disseste que não queres.
Então pego das tuas mãos a lua e, trajeto idêntico (montanhas, pássaro, nuvem, céu), devolvo-a ao mesmo local de onde a tomei. Sentada na sacada do teu prédio deserto olhas para mim e falas ‘querido, não consegues mesmo me amar’, apontas com o teu indicador fino para um ponto entre as estrelas, para o exato ponto em que estive instantes antes e, manhosa, dizes ‘é aquela. Aquela é a lua que eu queria’. Ergo a tua camisa e beijo, sem qualquer esperança de que um dia entendas, o teu umbigo.

beijos