segunda-feira, 14 de julho de 2008

o pavão

De volta à fauna de Aguardo (e, na falta de pavões para a foto , optei por uma foto bem colorida, de um desfile).

para Eduardo Pedrini

Sendo pavão, esvoaçando cores na cortina da cauda, Ilusão (o nome do bicho) caminhava rei e senhor no espaço apertado e árido do único zoológico do estado. Ilusão fora confinado ainda feto de pavão, ainda semi-vida, na incubadora importada que técnicos gabaritados haviam comprado especialmente para ele, para Ilusão, esperança de colorido especial para as tardes de sábado. Não soube ele enquanto feto, e nem depois quando adulto, que os cinco metros quadrados não eram o mundo, que os cinco metros quadrados eram apenas cinco metros quadrados e apertados. Ilusão entoava cânticos com olhar altivo e gogó afinado para turmas de crianças deficientes acreditando-se diante de seleta platéia especializada. Os aplausos serviam, para Ilusão, de confirmação do seu talento nato. Ilusão era, ou melhor, acreditava ser, perdoem-me a ironia, um leão. Pintava também. E exibia os quadros todos perfilados com assinaturas que ocupavam metade da tela. E escrevia. Poesias. O êxtase dos outros era o combustível do tanque de Ilusão. Viveu ali, nos cinco metros quadrados do único zoológico do estado até que adoeceu e, em menos de um mês, foi sepultado e esquecido. O espaço apertado e árido que era o mundo de Ilusão passou a ser a casa de Avestruz, que como o próprio nome diz era uma fêmea de avestruz. Os mesmos aplausos oferecidos a Ilusão eram agora oferecidos ao pescoço de Avestruz. Das cores de Ilusão poucos se lembram, restam apenas fragmentos do seu suposto brilho em fotos rasgadas e perdidas entre restos de comida e plástico no maior depósito de lixo daquele estado.
Beijos

quarta-feira, 9 de julho de 2008

por uma literatura de merda

A literatura é a única coisa (arte, ofício, etc...) que pode destruir o mundo através daquilo de que os homens mais se admiram: a sua auto-consciência. Não há como ler Thomas Bernhard e continuar achando tudo bonito. Podemos até ser felizes, mas temos que parar de pensar. Ou como diz Adenilton, o taxista: ‘a gente pensa muito. É isso que nos deixa deprimidos. Decidi parar de pensar’. E aí: biblioteca ou sorrisos?Por este motivo sou a favor de uma literatura que olhe a merda de perto. Que a examine. Que ria dela (e de nós também). Mas quero também continuar sorrindo...

Joãozinho caminhava em chinelos de dedo, o contorno das unhas dos pés mastigando o barro das ruelas da cidade pequena, o sol queimando o rosto sem indícios de pêlos, na mão direita, apertado firme, um martelo de cabo de madeira, na esquerda, espremido entre indicador e polegar, um prego furando o ápice de uma folha, na folha, em letra corrida, ‘a igreja é uma merda’. Na porta da igreja, da altura de três Joãzinhos, pregou a folha. ‘A igreja é uma merda’.
Joãozinho corria impulsionado por um par de tênis doados. Madrugada. Fugira de casa levando nas mãos uma folha onde estava escrito ‘a prefeitura é uma merda’, o martelo de cabo de madeira e um prego. Na porta da prefeitura, da altura de um Joãozinho e meio, pregou aquilo. ‘A prefeitura é uma merda’.
Joãozinho, após acabar a prova, tirou de dentro da mochila de lona um papel amassado, manchado por letras grandes e amassadas, onde se podia ler ‘a escola é uma merda’. Pediu licença à professora, a quem chamava pelo nome e, concedida a licença, atravessou o corredor e pregou, na porta de madeira que escondia um botijão de gás (da altura de meio Joãozinho), o papel escrito ‘a escola é uma merda’. Quando o vento erguia a folha era possível ler no verso ‘e os professores também’.
Joãzinho vestiu o pijama de inverno, calça e camisa compridas, deitou-se no colchão macio, puxou para sobre o seu corpo o cobertor e a poeira que havia nele, e ficou olhando, na escuridão do quarto, uma folha que só ele via e na qual só ele sabia que estava escrito ‘a vida é uma merda’. Escondeu a folha embaixo do colchão, da mesma forma que a sua mãe fazia com os embrulhos de presentes.
Em uma manhã daquele ano, naquela cidade, naquele quarto, os pais de Joãozinho estranharam a demora do filho e foram acordá-lo. No quarto de Joãozinho estava Joãozinho morto, um filete de sangue escorrendo do meio da testa onde estava pregado um bilhete lacônico que cobria nariz e boca do menino. ‘Eu também sou uma merda’.

Beijos.