sábado, 26 de abril de 2008

feito uma flecha contra uma maçã sobre alguma testa


'Aguardo' está lançado.
para Fábio Hostert

As nossas jaulas estavam separadas por 2 metros de penumbra e cheiro de mofo. Eu havia trancado Stela e acabava de jogar a chave da minha cela para longe, através de um dos espaços entre as colunas de aço. ‘Stela’, eu sussurrei, mas Stela não me ouviu e eu não pude tocar o seu corpo ou os seus cabelos para despertá-la. Eu nunca mais poderia. Estávamos assim e assim estaríamos durante os intermináveis dias e noites da minha eternidade de vampiro (‘prazer’, eu digo, agora que finalmente me apresentei) e durante as poucas dezenas de anos em que Stela ainda seria ela, Stela. As grades separavam o que a vida não uniu. Estico o braço, mas a pressão do aço contra o meu tórax limita o movimento. Stela diria, como já dissera, ‘ninguém muda aquilo que é’. Eu sou um vampiro, Stela. Ninguém muda aquilo que é.
Stela, eu te prendo porque eu te amo. Simples assim. Se eu te libertasse eu voaria sobre o teu pescoço como uma flecha contra a maçã sobre alguma testa. Para que te mantenhas viva eu tenho que te prender. Para que te mantenhas viva eu tenho que te manter longe de mim. Simples assim. Mas não tão longe que eu não te veja, não quero sobre mim uma morte (que, se me privasse de ti, ocorreria) um tanto quanto paradoxal para a imortalidade de um vampiro. Então, Stela, escuta-me enquanto dormes. Ouves? Estou sussurrando que eu te amo. Eu te amo, Stela. Eu te amo. Parece que choro? Não choro. Eu não sei a cor dos meus olhos.
Lírio (é esse o nome que Stela me deu. É assim que ela me chama), ninguém muda aquilo que é. Os teus caninos te distanciam de mim mais do que este par de grades. Eu te diria ‘me beija’, mas os teus caninos não me beijariam. Estou aqui, eu te diria (Stela falaria), mas a tua aproximação seria a torneira que abre a jugular. Não é isto o que queres. Eu sei, Lírio. Então fica aí, onde ainda consigo ver o teu rosto, e eu ficarei aqui, onde podes ainda me observar, até que as horas e as noites e a fome e a dor tirem de mim, silenciosamente, o sangue que te encharcaria os lábios.
Eu balanço as grades como se fosse possível arrancá-las. As minhas mãos doem. Stela dorme. Quero avançar sobre o seu corpo. Quero o seu pescoço. Quero gritar no seu ouvido oco o que ela, Stela, já sabe. ‘Eu não consigo mudar o que eu sou’. E quero penetrar o rio vermelho perdido ali na sua carne como se fôssemos um, Stela e eu, Lírio e ela. E depois descansar no seu colo morto, no seu colo calado feito uma boneca de pano, guiando a sua mão fria, a mão fria de Stela, por entre os meus cabelos suados, e articulando em seus lábios secos, nos lábios secos de páginas de jornal, as palavras que eu sei que ela, Stela, diria: Eu te amo.
Stela dorme e eu cansei de brigar com as grades.
Ninguém muda aquilo que é.
Sento-me cansado no piso frio. Olho os meus pés descalços. Tiro a prótese de sobre os meus dentes podres. Passo a língua áspera pelas falhas da arcada. Percebo a minha corcunda, os meus braços magros. Stela dorme o exagero dos calmantes. É por este motivo que permanece comigo. Da minha cela eu tento gritar, pela enormidade da distância que nos separa (mas o que sai da minha boca é um som abafado, quase um ruído), ‘Eu sou um vampiro. Eu sou um vampiro’. Stela ronca. ‘Eu sou um vampiro’. Passam alguns minutos. Eu sou um vampiro. Mais alguns minutos. E juro que eu quase acredito.
Beijos

domingo, 13 de abril de 2008

carmem, por jorge


Não me interessa a realidade, me interessa o que eu penso que a realidade é. Corro o risco de falarem que é escapismo. Escapismo é ter certezas.

para Daniel Olivetto
Apenas ela, morta, e eu, magro, estamos no estômago da capela. Mais ninguém. Eu me sinto sozinho como eu sempre estive e como nunca percebi. E penso: ‘Carmem’, e quero que Carmem, a morta, pense: ‘Jorge’, mas Carmem, a morta, não pensa, e eu, Jorge, então falo ‘Carmem’, e quero que Carmem, a morta, fale: ‘Jorge’, mas Carmem, a morta, não fala, e eu, garganta seca, cabelo ralo, então grito: ‘Carmem’, e quero que Carmem, a morta, grite: ‘Jorge’, mas não é ela quem grita: ‘Jorge’ e sim dois ou três amigos bêbados que ainda estão comigo (é deles o grito): ‘Jorge, a tua mulher morreu. É assim a vida. Sossega. Te acalma. É assim a vida’.
A vida não é assim. Os dois ou três amigos bêbados estão em outro lugar (outro bar ou outra capela) e sem que eu precise gritar: ‘Carmem’, nem mesmo falar ou pensar: ‘Carmem’, Carmem, a morta, ergue-se linda do colchão em que era velada (está jovem) e caminha até mim, até o meu corpo (também jovem), e responde: ‘sim’, e completa: ‘sim’, e ainda (sim): ‘por toda a vida’. E, estranho, eu não me sinto sozinho

Beijos

quinta-feira, 3 de abril de 2008

mais triste do que uma esfiha fria

Nesta sexta-feira, aniversário de 3 anos do grupo K. Parabéns Léo, Rafa, Joanna.

para Rafael Koehler

Eles se conheciam como uma árvore conhece um regador. Olhavam um para o outro, os olhos de um no corpo do outro, até que em uma tarde cinza se convidaram (o corpo de um ao corpo do outro) para o quarto que apenas um deles conhecia. Não disseram nomes (era como se nomes não houvesse), nem ofereceram ao corpo um do outro (no cálice dos lábios) qualquer vinho. Jogaram no chão os frutos podres das roupas caras. Nus, procuraram no corpo um do outro o melhor encaixe. No quarto que apenas um deles conhecia os dois tremiam em convulsões repentinas, a baba pegajosa da boca não colando o tórax nas costas (contra a qual ele, o tórax, repetidamente arremetia). Estavam sós em uma esquina de suores e gemidos tentando, em estocadas cada vez mais fundas, pescar no mar dos tubos algo para o próprio almoço. A fome gritava nos estômagos. As pernas enlaçadas eram prisão e não abraço. Prisão. As pernas enlaçadas eram para impedir que o primeiro fugisse sem deixar aquilo que o segundo buscava. No gozo segurado para que não chegasse antes do sono; no gozo que não podia sair porque gozar, ali, era perder muito de si sem ter recebido do outro nenhum tesouro; no gozo que, se viesse, os afastaria; no gozo jorrando no carpete gasto afogando os ácaros; naquele gozo, eles não estavam. Aquele gozo era leite saído de nenhuma vaca. No adeus do sexo mais solitário que se permitiram, um deles calou um beijo desafinado, o outro saiu mais triste do que uma esfiha fria.

Beijos.