terça-feira, 19 de agosto de 2008

sobre o amor

Com tantos términos e inícios de relacionamentos ao meu redor (de amigos, de conhecidos, de outros); com tanta gente à procura de alguém como se procura a melhor marca pelo menor preço na prateleira vazia de um supermercado em uma tarde de sábado; com tanta lágrima (dos outros, minha) derramada no leito fundo do rosto; com tantos medos e noites solitárias; com tanta espera; com dores que se materializam na pele, no corpo; com sofrimento; com tanta desesperança (de conhecidos, de amigos, de outros), resolvi pensar sobre o amor e pensando sobre o amor descobri que penso sobre ele o mesmo que pensava Eráclito Borges. E, por este motivo, escrevo sobre o amor o que Eráclito escreveu, antes de ser levado por um deus no qual não acreditava, no seu ‘Diário do Isolamento’, Livro IV, de 12 de março de 2001. Nele, assim lemos:

‘Amar o outro é não o limitar.
É saber que o outro é maior do que tudo o que dele podemos chegar a conhecer.
É saber que o outro tem o seu caminho e que o caminho do outro pode ter um destino diferente do nosso, e ajudar o outro a abrir o seu caminho mesmo que isto consista em perdê-lo, mesmo que isto consista em ficar sozinho (e, ficando sozinho, nunca se sentir sozinho).
Amar o outro é despedir-se dele com um beijo carinhoso no rosto.
Amar o outro é saber deixar o amor próprio de lado, é saber ser bobo, tolo, porque só quem ama a si próprio consegue ser tolo, bobo, e consegue amar o outro.
Para se amar o outro não se pode ter medo da solidão, não se pode permitir a tentação de encarcerá-lo naquilo que nos falta, nem se pode fazer do outro as grades da nossa própria prisão.
Mas maior do que tudo o que acima eu disse,
Digo que amar é explicar ao outro os nossos limites para o amor,
Porque limites temos já que ninguém é santo
E, por mais que queiramos apedrejar, em amando, ninguém é pecador’.

E que assim seja
Beijos

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

eis-me aqui


e que assim seja.
Ele estava mais velho do que podia acreditar. Tentou contar os anos um a um até o ano zero, até voltar a ser uma bola de qualquer coisa sob o novelo de lã dos intestinos da mãe, mas o fôlego fugiu quando chegou aos cinqüenta e três e nisso um dia e uma noite já haviam passado. Apertou um botão, idêntico ao alarme que destravava o carro que ele nunca mais dirigiria, e esperou a refeição de remédios a ser oferecida pela enfermeira do dia. Riu de si, do reflexo de si que aparecia na tela da tevê quando ela ficava escura. Estou ficando escuro, pensou. Estou me eclipsando. Preciso tentar, pensou, ao menos tentar. Molhou a baba seca que cobria os lábios com o resto de saliva que disfarçava a aspereza da língua. Quis falar, mas ninguém ouviu o grunhido grave de um velho quase mudo. Apertou o botão. A enfermeira não veio. Percebeu que estava com fome, mas não tinha como chegar à geladeira (‘o que tu queres está ali, ao teu alcance. Vai, te lança’, lembrou-se dos pregadores todos de sua infância: pais, pastores, médicos, professores. ‘Vai, menino. Por que não sorris?’). Percebeu as coxas molhadas pela urina que saiu do seu corpo, sabia, mas não sabia quando ou como (‘tens que te responsabilizar pelo que fazes. Tudo deve ser calculado. Todo mal pode ser prevenido’, lembrou-se dos pregadores todos de sua vida: amigos, livros, mulheres, filhos. ‘Anda, homem, que a vida não anda por ti.’). Percebeu que a enfermeira havia saído, que não havia mais enfermeira, que não havia mais ninguém, que na sua mão dormiam apenas um botão inútil e uma sala de mentiras (‘Ele está ali’, diziam de deus, dos santos, da força cósmica, dos anjos. ‘Estou aqui’, diziam as sucessivas cônjuges o abraçando. ‘Nós também estamos’, o coro bêbado dos amigos tentava, desafinado, um canto). O velho estava sozinho. E o velho entendeu que ele e a vida ainda faziam o que ele e a vida haviam feito o tempo inteiro: brigavam para ver quem guiava e quem seguia. E o velho entendeu que era sempre ele quem perdia, que fora sempre ele quem perdeu. O velho entendeu que ele nunca tivera o controle de nada: de esfíncteres, do sono, do que queria ou desejava, dos outros, até mesmo os próprios sonhos o velho nunca controlara. E o velho entendeu que não acreditava em nada e que não fazia falta acreditar. Então o velho resmungou, lábios grudados, ‘eis-me aqui’, e a vida veio, melhor e mais bonita do que a enfermeira que desaparecera e, cobrindo com o vento da palma da mão os olhos do velho, sussurrou ‘não há mais dor’. E o velho sorriu. E não houve mais dor alguma. E a vida abriu as cortinas brancas da sala do velho e, voando, partiu.

beijos