sábado, 26 de janeiro de 2008

estilingues e pedras e passarinhos


Oi, gente.
Trabalhando bastante na peça nova da Cia. Carona e na revisão de meu primeiro livro, Aguardo (que deve ser lançado no final de fevereiro ou começo de março). Aí vai mais um bicho e a foto dele, do Bruninho.


Bruninho, o bichinho da árvore, grudou-se ao caule no exato lugar onde não havia espinhos. Não sabia voar, o Bruninho. Era do tamanho do polegar do único filho dos donos do sítio. O menino, medroso, passava por Bruninho e não o via, preocupado que estava com aranhas e cobras e estilingues e pedras e passarinhos. Bruninho não tinha medo. Protegido do vento pelo caule, das chuvas pelas folhas, de ataques pela barricada natural da árvore, Bruninho, o bichinho, estava feliz e seguro, forte e saudável, belo e perfeito, calmo e disposto. Bruninho conhecia o momento exato em que o sol surgia, sabia dos presságios de trovoadas, identificava os pios e os gemidos de cada um dos outros bichos, sabia dos sinais de acasalamento de fêmeas e machos, conhecia o melhor horário para fechar os olhos e dormir e o melhor momento para despertar com o corpo saciado. Bruninho observava o menino passeando pelo mato. Observava o menino se machucando e, observando o menino se machucando, percebeu o quanto o menino se machucava. Foi picado. Mordido. Cortou o pé. Trincou a unha. Teve a pele arranhada. Quebrou uma perna e dois braços e mais alguns ossos esparsos e Bruninho estava intacto. Bruninho nunca `quase morreu`. Quando Bruninho morreu foi de uma vez. Sem os espirros da pneumonia. Sem os lapsos da velhice. Sem os ais das dores. Sem os xaropes receitados pelas tias. Morreu assim de repente como um paralelepípedo morre ao ser amassado pelo pneu do primeiro carro. O menino, adulto, mostrou à mulher os caminhos que correra naquele mato. Mostrou as marcas nas pernas, as cicatrizes, os machucados. A mulher sorriu um sorriso apaixonado. Não viram Bruninho na árvore para a qual apontaram. Não perceberam a carcaça de Bruninho agarrada ao caule, o marrom da morte de Bruninho agarrado ao caule. E embaixo daquela árvore transaram.


Beijos sem gosto de Bruninho, o bichinho da árvore.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

o coração de adão


Oi, gente.
A fauna de Aguardo me empolgou. Catei fotos de viagens antigas e descobri essa aí, de Adão, o cachorro, e de seu galho.



Era dourado e seguia o dono (um dono de quem conhecia somente as botas). O pedaço de madeira preso na boca como um palito gigante de limpar os dentes atrapalhava a alimentação, mas ele, Adão, não se importava. Rosnava se alguém ameaçasse roubar-lhe o galho. O dono (de quem Adão conhecia apenas o assovio agudo), passos indecisos de bêbado, marcha cambaleante, tropeções, era o guia. Adão, cachorro treinado, abanava o rabo. Como a bíblia para um devoto, como a aliança para um recém-casado, Adão, o cão, levava o galho. Como se fosse fidelidade, como se fosse dinheiro, como se fosse qualquer outra verdade, Adão, o cão, guardava o galho. Como se aquilo fosse a mulher dos sonhos ou a cadela no cio, Adão amava o galho. O galho era o fio que unia cão e dono. Era o coração de Adão. Babando enquanto bebia, roncando em sono pesado, ali, preso aos dentes, estava o galho. Caçando perdizes, correndo no campo, ali, entre os dentes, se via o galho. O tempo passando, passando meses, passando anos, Adão firme seguia o dono com o galho amassado entre os lábios. O dono (de quem Adão já conhecia cheiros, medos, fomes, anseios) morreu em uma madrugada fria. Na madrugada mais fria daquele ano frio. O funeral foi discreto: uma pá e um padre. Na madrugada mais fria daquele ano frio, Adão, o cão, soltou o galho. E Adão, o cão, tendo soltado o galho, ficou parado. Não sabia mais o que era frente, o que era trás, o que era lado.

Beijos tristes de Adão, o cão sem galho.

domingo, 20 de janeiro de 2008

iracema


Oi, gente.

Mais um texto da fauna de Aguardo. Mais um texto da minha fauna. Por favor não tenham raiva de Iracema porque eu também sou ela.



Iracema, a hiena, debruçada sobre o muro amarelo que separa o seu terreno do restante do mundo, solta a sua gargalhada de caninos. Protege a propriedade, o que ela tão exaustivamente conquistou, os tijolos escondidos por quilos de argamassa, os vitrais coloridos, as estantes forradas de livros. Iracema, as tetas murchas nunca sugadas, rosna para o padeiro que passa, xinga os colegiais em seus uniformes azuis, ergue o dedo médio a cada beijo que percebe de um novo casal de namorados. Trouxe a cama para a varanda, abraça a arma como a um amante saciado (amante que nunca teve e a quem nunca saciou), coça ali entre os pêlos secos do meio das pernas e não sente nada. Iracema, a hiena, cuida bem de tudo. Espana o pó da casa inteira dia sim dia não e, dia não dia sim, passa um pano molhado no chão. Iracema, a hiena, cimentou o buraco que nunca usou. Achou melhor. Pensou `tudo o que não tem uso merece um fim`. Iracema ajusta o despertador para as seis horas, toma um banho breve com sabão neutro e água fria, prepara torrada e suco de laranja para o desjejum, caminha ligeira em uma das três esteiras da sala, depois troca de esteira e corre. Iracema ainda troca mais uma vez de esteira e nesta, na terceira esteira, quase voa, quase morre. Com o lado oposto ao da unha vermelha que foge do indicador direito mede o pulso. Batimentos conforme o prescrito pelo médico, pelo fisiologista, pelo esteticista, pelo nutrólogo. Almoço, tarde, música leve, solo de flauta, vestido bonito, sapato de salto. Iracema está pronta para proteger a casa. Debruçada sobre o muro amarelo que a separa do mundo ela gargalha, ela xinga, ela ralha. O padeiro que passa, os colegiais em seus uniformes azuis, o novo casal de namorados mal percebem. Apenas mudam de calçada. Iracema, a hiena, deitada sobre o colchão ortopédico, abraçada ao duplo cano da espingarda, fecha os olhos e tenta dormir. Amanhã Iracema precisa acordar e fazer tudo de novo. Tudo de novo. Amanhã Iracema precisa fazer tudo de novo. Iracema, a hiena, sabe que tudo que não tem uso merece um fim. Assim é o mundo, pensa Iracema, acha Iracema, sabe Iracema. Para Iracema, o mundo ser assim não é um problema.

Beijos com a saliva e os lábios de Iracema.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Liloca era o que Liloca foi



Oi, gente. Cansado de fórmulas. Cansado de respostas. Da infinidade de respostas que exigimos para dar um passo. Cansado de certezas, todas parciais, todas criadas, todas destruídas. Nem por isso triste. Não quero entender nada. Quero a taça transbordando de qualquer coisa. Da coisa que eu não sei o nome eu quero só o gosto. Igual a Liloca, a minhoca:


Liloca, a minhoca, cavava a terra como quem dorme. Vivia nos dois metros quadrados de uma horta de alface em Aguardo. Liloca era um tubo marrom de menos de 10 cm, mole, frouxo. Não sei o que comia (não me interessei em pesquisar nos livros de biologia) e tenho certeza que ela, a minhoca, também não sabia. Sabia rastejar, lentamente, criando túneis da largura do seu corpo que, em uma semana ou duas, colabariam (suponho). Liloca entrava e saía numa interminável orgia com o barro, sem ápice, sem êxtase, sem clímax. Dizem que ajudava na plantação, mas Liloca, indo e vindo, entrando e saindo, não tinha intenção, não tinha vontade, não respondia a questionários sobre os motivos da escavação (nada sei da psicologia destes bichos). Liloca era uma minhoca. Nada interessava mais a Liloca do que ser uma minhoca. Não a rainha das minhocas. Não a poeta das minhocas. Não outra coisa além ou aquém, acima ou abaixo, melhor ou pior do que ser uma minhoca. Liloca morreu da mesma forma que viveu. Sem alarde. Não houve eclipse. Trombetas não soaram. Morreu amassada pela borracha da sola de um sapato junto com outras três. Não houve funeral. As minhocas restantes não choraram. Liloca era o que Liloca foi. Nenhum futuro para o espírito de Liloca (não me interessei em estudar a teologia das minhocas). Nenhuma mágoa de Liloca pelo que deixou de fazer. Nenhum plano de Liloca havia sido frustrado. Nenhuma queixa de Liloca foi ouvida quanto ao peso do sapato. Ninguém se lembra de Liloca. Nem ela (que morreu), nem eu.


A foto aí de cima é uma das que eu mais gosto. Foi tirada em Toronto, no início deste ano. Dei o nome de `Colombo, o pombo`. Depois daquele breve instante nunca mais vi Colombo.

Inveja imensa de Liloca, a minhoca, e do pombo Colombo. Não pela morte ou pelo desaparecimento de ambos. Inveja do que eram ou são.
beijos

sábado, 12 de janeiro de 2008

sem título

oi, gente.
ainda estou me familiarizando com esse negocio de blog. prometo melhorar.
o texto do primeiro dia, sobre liberdade, faz parte do processo de montagem do novo espetáculo da Cia. Carona de Teatro, `Volúpia`, que deve estrear ainda neste semestre. a direção é de Pépe Sedrez.
essa poesiazinha aí embaixo, sem título, é de ontem e hoje. não é de nada, nem tem função nenhuma, como eu acho que todo texto deve ser.
Se o que me é dado é tristeza
Que a tristeza seja opaca e cinza como a neblina
E que tenha lágrimas e soluços e tardes frias e noites longas e pés molhados em estradas de barro.

Mas se o que me é dado é esperança
Que ela seja um raio que rasgue o céu pesado do meu peito
Que ela ouse minimizar a dor como um infarto ousa interromper a vida
Que ela crie (mesmo que em seguida apague) uma frase, uma letra,
e em alarde (madrugada plena) grite “é manhã, querido, olha o sol, menino, já é tarde”.

Se o que me é dado é dor
Que doa e arda e esmague
Que caminhões recolham os meus gritos jogados fora em sacos de lixo
Que se amontoem os meus ferimentos rivalizando com os prédios mais altos da cidade
Que seja servida à mesa a minha angústia
Que os cortes da minha carne sejam mastigados com pressa (garçom aguardando a gorjeta, taxista esperando o embarque).

Mas se o que me é dado é paz
Que seja como a espuma da derradeira onda antes do primeiro homem chegar à praia
Ou como o galho da árvore antes do ninho
Ou como o lençol antes da insônia ou a taça antes do vinho.

Se é ódio o que me é dado
Que se lance do meu revólver a bala que aleijará a mais inocente criança
Que o carro não freie e que o grito não cale
E que o meu ódio indócil, sedento, não seja contido, não seja algemado
Que o meu ódio sedento, indócil, seja a mandíbula do cão contra a pele da moça
A doença que se esparrama no sofá das entranhas
A mosca que abençoa o cadáver
Que o meu ódio seja um estuprador se o que me é dado é ódio
E que eu vá às ruas com ódio estampado no rosto
Exalando ódio na fumaça suja do cigarro que eu trago, se é ódio o que me é dado.

Mas se for amor,
Se for amor o que me derem,
Que seja amor
Amor sincero
Amor sagrado.
beijos

domingo, 6 de janeiro de 2008

liberdade

‘Olha ali’, ele disse, e apontou para o horizonte que corria até os azuis de céu e mar se confundirem. ‘Lindo, não?’, ele perguntou. Lindo. ‘Como é que tu te sentes?’. Eu me sentia livre. O vento gelado escorria como lágrima em meu rosto. Eu estava virada do avesso, sem medo de gritar palavrões ou de parecer feia ou mesmo de estar sendo ridícula ali, parada no cume daquele desfiladeiro. ‘Te entrega’, ele sussurrou no meu ouvido. ‘Te entrega pra isso, pra essa sensação’. ‘Te entrega’. E eu fechei os olhos e senti as pernas bambearem e senti o vento pelo corpo todo como se o vento me levasse, como se eu estivesse voando, e sorri e o meu sorriso pareceu mais largo do que o habitual, mais sincero, mais verdadeiro. ‘Apaga os limites’, ele disse. ‘Todos os limites’, ele disse. ‘Todos os limites’. E eu apaguei os limites, todos os limites, e o meu sorriso começava na sola do pé e fugia para além de mim, para além do mar que eu sentia sem necessidade de observá-lo, sem necessidade de olhar. E ele falou, ‘vou te levar até aquela pedra, estás vendo?’. A pedra que ele mostrava quase se jogava para o precipício, quase caía. Depois da pedra havia ar e queda. Depois da pedra. E ele me carregou nos braços e me colocou com carinho sobre a pedra e me segurou porque o vento era forte demais e pediu ‘fica descalça’. A pedra era menos fria do que o vento. ‘Te entrega pra isso’, ele gritou para que eu pudesse ouvi-lo. Com os olhos fechados, com os pés sentindo as ondulações da pedra, com o corpo sendo embalado pelo vento, eu me sentia menor e maior, sem medo. ‘Te sentes livre?’, ele perguntou. ‘Totalmente livre?’. ‘É assim a tua liberdade?’. O rosto dele estava cerrado, as mãos dele apertavam os meus ombros. Empurrou-me para mais perto do penhasco. ‘É assim a tua liberdade?’. A minha liberdade era ar e queda, não era pedra. ‘Então te joga’. Naquele instante aquilo que parecia liberdade transformou-se em algo muito doloroso. De onde vinha o vento eu passei a perceber o frio. A pedra sobre a qual eu pisava começou a machucar os meus pés. Ele não era mais ele, a pessoa a quem eu amava, mas era ele, a pessoa que me prendia, que me impedia de sonhar o vôo de águias e andorinhas. O horizonte não era mais o sonho que se persegue mas o alvo que não se alcança. Ele falava ‘te joga’ mas eu não conseguia. E ele repetia ‘não te sentes livre?’ e eu não mais me sentia. E ele falava ‘isso tudo não é lindo?’ e aquilo tudo era horrível. E ele me deixou um segundo ou uma hora entre cair ou não, entre me jogar ou não, entre ele ou não, e depois veio e me abraçou forte e beijou a minha nuca e disse que me amava e eu acreditei e ele perguntou ‘vamos?’ e eu disse ainda não e fiquei ali, abraçada por ele e por várias impossibilidades, me sentindo pequena. Chorando e sorrindo. Triste talvez. Talvez não.