sábado, 22 de novembro de 2008

a vida e a velha

'Renato, o Menino que era Rato' e Léo Kufner, o menino que era Renato, na nova montagem infantil da Cia Carona de Teatro. A pintura é de Telomar Florêncio.

A única coisa que me faz falta, pensa a velha, é aquilo que não senti. Eu poderia ter passado a vida inteira aqui, pensa a velha (e aqui é sentada em uma cadeira de balanço tendo os ossos, que no passado foram nádegas, amparados por uma almofada bege), imóvel, pensa a velha, sozinha, pensa a velha, e poderia ter sido perfeito. A vida não é lá, pensa a velha (e lá, para a velha, já é a partir dali, do centímetro além de onde os seus pés se encontram, do centímetro além de onde a catarata de seus olhos lhe permite ver, do centímetro além daquilo que deixa de ser ela, a velha, para ser outra coisa qualquer), a vida é dentro de mim (e dentro de si a velha vive dores mais profundas do que as do parto que nunca teve, do que as dos cortes que nunca sofreu; e dentro de si a velha vive alegrias maiores do que as de reencontros, de vitórias, de sorrisos; e dentro de si a velha vive medos e vive orgasmos e vive anseios e nada em mares de que só ouviu falar e voa entre nuvens e cai em lugares que nunca conheceu). A vida, pensa a velha, será sempre apenas aqui (e a velha tenta erguer o indicador até a têmpora esquerda, mas o único movimento que o seu dedo agüenta é um leve tremor). A velha, a cadeira sem balanço, as nádegas agora ossos, a vida e a almofada bege permanecem ali, estáticas, enquanto na estrada de barro em frente à casa, rasgando a paisagem, um carro passa.
beijos

sábado, 15 de novembro de 2008

a eternidade de Pililito

Tempos sem escrever aqui. Na foto, o que resta de Pililito. Assim é a eternidade dele. Que a eternidade dele também seja a minha.

Era assim que Maria o chamava: Pililito. Este era o seu nome e o de todos iguais a ele (círculos doces e achatados sustentados por um palito). Não tinha para onde ir, não tinha planos, não tinha êxtases, não tinha medos, nem sobrenome tinha. Era Pililito e pronto. Como os demais pirulitos. Não pensava em ser mais do que era nem podia ser menos. Não pensava em ser nem podia não ser. Não pensava e nem poderia (melhor para Pililito e melhor para Maria). Na única foto em que apareceu, de Pililito via-se apenas o palito. O resto se supunha dormindo no escuro criado pelas venezianas dos dentes de Maria. As rugas no corpo de Pililito não eram rugas, eram ausências. O tempo não era um secar e encolher do corpo como seria com Maria, como acontecia com frutas e bichos e folhas e outros. A vida de Pililito, o caminho que levava à morte de Pililito, era idêntica à de deuses e de idéias e de crenças e de dores. A vida de Pililito, a morte de Pililito, era (assim como a vida e a morte de idéias e dores e crenças e deuses) um lento desaparecer. Sei mais sobre Pililito do que ele jamais saberá sobre si. E nem o interessaria, acredito. O que interessa a Pililito é ser derretido até que, daquilo que ele era, reste somente o palito mastigado e torto (esquecido na grama de um parque? Jogado na lata de lixo?). A história de Maria eu não quero contar porque a história de Maria será sempre a história do pirulito seguinte, daquilo que há de vir, da angústia que sufocará. A história de Maria eu não quero contar porque a história de Maria é a história tua e minha, a história de um buraco que só é preenchido momentaneamente, a história de uma constante busca daquilo que no segundo seguinte volta a faltar. Aplaudo Pililito, mas ele, sensatamente, não tem ouvidos.

Beijos de um moralista.
E que a paz de Pililito esteja conosco agora e na hora da nossa morte. Amém.