Oi, gente.
Mais um texto da fauna de Aguardo. Mais um texto da minha fauna. Por favor não tenham raiva de Iracema porque eu também sou ela.
Iracema, a hiena, debruçada sobre o muro amarelo que separa o seu terreno do restante do mundo, solta a sua gargalhada de caninos. Protege a propriedade, o que ela tão exaustivamente conquistou, os tijolos escondidos por quilos de argamassa, os vitrais coloridos, as estantes forradas de livros. Iracema, as tetas murchas nunca sugadas, rosna para o padeiro que passa, xinga os colegiais em seus uniformes azuis, ergue o dedo médio a cada beijo que percebe de um novo casal de namorados. Trouxe a cama para a varanda, abraça a arma como a um amante saciado (amante que nunca teve e a quem nunca saciou), coça ali entre os pêlos secos do meio das pernas e não sente nada. Iracema, a hiena, cuida bem de tudo. Espana o pó da casa inteira dia sim dia não e, dia não dia sim, passa um pano molhado no chão. Iracema, a hiena, cimentou o buraco que nunca usou. Achou melhor. Pensou `tudo o que não tem uso merece um fim`. Iracema ajusta o despertador para as seis horas, toma um banho breve com sabão neutro e água fria, prepara torrada e suco de laranja para o desjejum, caminha ligeira em uma das três esteiras da sala, depois troca de esteira e corre. Iracema ainda troca mais uma vez de esteira e nesta, na terceira esteira, quase voa, quase morre. Com o lado oposto ao da unha vermelha que foge do indicador direito mede o pulso. Batimentos conforme o prescrito pelo médico, pelo fisiologista, pelo esteticista, pelo nutrólogo. Almoço, tarde, música leve, solo de flauta, vestido bonito, sapato de salto. Iracema está pronta para proteger a casa. Debruçada sobre o muro amarelo que a separa do mundo ela gargalha, ela xinga, ela ralha. O padeiro que passa, os colegiais em seus uniformes azuis, o novo casal de namorados mal percebem. Apenas mudam de calçada. Iracema, a hiena, deitada sobre o colchão ortopédico, abraçada ao duplo cano da espingarda, fecha os olhos e tenta dormir. Amanhã Iracema precisa acordar e fazer tudo de novo. Tudo de novo. Amanhã Iracema precisa fazer tudo de novo. Iracema, a hiena, sabe que tudo que não tem uso merece um fim. Assim é o mundo, pensa Iracema, acha Iracema, sabe Iracema. Para Iracema, o mundo ser assim não é um problema.
Beijos com a saliva e os lábios de Iracema.