terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

as pipas de Aguardo

De volta, mesmo que (de acordo com o post anterior) apenas uma bunda bonita.

Os pés firmes no chão, na outra extremidade de Rodrigo a pipa voava. Era na pipa que Rodrigo, por uma inversão absurda de perspectiva, se apoiava. Não soltava os pés nem se jogava da sacada de um edifício crendo que a pipa pudesse ser paraquedas. Não era tolo mais do que eu ou tu. Mas acreditava que era a pipa que o carregava. A pipa de Rodrigo, em um mundo repleto de pipas, em nada diferia das outras. Nem nas cores, nem na beleza, nem no vôo. Rodrigo caminhava, cumprimentava as pessoas por quem passava (cuidando para não enrolar o fio da sua com os fios das outras pipas: é sabido que fios de pipas nem sempre convivem bem. Há pipas inimigas. Pipas que riem de outras pipas. Pipas que competem entre si. Pipas tão sutis, quase teias de aranha, que negam a sua pipicidez – pipicidade? – mas que a um exame mais meticuloso definitivamente entre elas, pipas, se incluem) e as pessoas cumprimentavam Rodrigo de volta. No seu vigésimo aniversário, as pipas dos amigos se confundindo no céu com os balões da festa, Rodrigo recebeu em um embrulho uma tesoura e um recado breve ‘és tu quem a manténs, não ela que te segura’. Pensou que o texto anônimo se referisse à sua mãe, mas mesmo não entendendo como (a mãe era forte e lúcida) optou por não perder mais tempo. Abriu os outros presentes. Usou a tesoura para cortar alguns papéis e o recado foi reciclado. Morreu com 65 anos, casado, empresário honesto, 2 filhos, 3 netos, comungando religiosamente, feliz. A pipa foi usada como travesseiro e levada com o seu corpo, o corpo de Rodrigo, pelo trajeto inteiro da capela à terra, do alarido das últimas rezas à solitária companhia dos vermes. No céu de Aguardo, após a missa, dividiam o espaço pardais e pipas. Morreu acreditando que era a pipa que o mantinha em pé. Dizem que deu testemunho em silenciosas mesas brancas. Falava ‘carreguem as vossas pipas como eu carreguei a minha. É por elas que vossas almas não se farão perdidas ’. Rodrigo nunca desmontou a sua pipa, nunca a largou. Talvez a pipa, na mesa branca das pipas, comentasse com a lotação de pipas vivas ‘nunca larguem os seus Rodrigos. Foram eles que vos criaram. São eles que vos dão vida’.
Beijos de um moralista que odeia pipas (e que tenta encontrar os fios de todas as que carrega)

E (serão também pipas?) os melhores livros que eu li em 2008, na ordem aleatória da minha memória:

- O Mar (John Banville)
- A Estrada (Cormac Mccarthy)
- A Casa das Belas Adormecidas (Yasunari Kawabata)
- Ontem Não Te Vi em Babilônia (António Lobo Antunes)
- Austerlitz (W G Sebald)
- Paris Não Tem Fim (Enrique Vila-Matas) – os outros 3 dele que foram lançados no Brasil também são excelentes.
- Os Detetives Selvagens (Roberto Bolaño)

Últimos beijos.

7 comentários:

J disse...

Gostei do texto!

Carla Fernanda da Silva disse...

Não vemos mais pipas no céu. Será que temos tanto medo de perdê-las que já não temos mais coragem de alçá-las ao céu? E assim, as mantemos bem próximas... sempre ao alcance das mãos...

James Beck disse...

Saudade de ti greg!
Bom ler tuas coisas novamente, viajar contigo, quer seja nas linhas do que escreves ou mais ainda nas entrelinhas delas [das linhas].
Aguardo não é uma cidade boa de se viver, mas a cada dia que passa, percebo o quanto vivo nela. A pipa de rodrigo voava, o conduzia, o manteve seguro... Mal sabia ele o que ela pensava a respeito dele.
Não sei oq ue minha pipa pensa de mim, mas em breve vou cortar o fio. Já estou com a tesoura!

Um abraço de extremo carinho,
james

Anônimo disse...

ele voltou!!!
e voltou muito bem!
tu é foda!
confesso que não gostei muito do final, será que caiu muito açucar ou eu que sou amargo demais?
agora eu estou entrando no mundo dos contos (como leitor!), vou bater cartão aqui!
Inté!

gregory haertel disse...

oi, Enzo. talvez o final tenha ficado meio 'açucarado', mas eu penso nele mais como irônico. se substituirmos as pipas por qualquer outra coisa que imaginamos que nos mantém de pé (crenças, casamentos, trabalho, etc...) e descobrimos que, no final, fomos nós quem demos vida a essas 'pipas', que elas sem nós não existiriam, que o que nos mantém de pé somos nós mesmos e não qualquer outra coisa, penso que ouvir isto, no final, da boca das próprias 'pipas', seja irônico. sei lá.

Léo Kufner disse...

não vai dar pra entrar no meu quarto qnd vieres aki... tem muitos fios aki... :S

Clóvis Truppel disse...

E aquele que nunca segurou uma pipa?
que never foi preso por um fio... tendo como dona uma pipa de pipacidade fluída?
pobre deste que nunca foi nem será um menino pipeiro qque naum a terá como travesseiro...\o/