sábado, 22 de novembro de 2008

a vida e a velha

'Renato, o Menino que era Rato' e Léo Kufner, o menino que era Renato, na nova montagem infantil da Cia Carona de Teatro. A pintura é de Telomar Florêncio.

A única coisa que me faz falta, pensa a velha, é aquilo que não senti. Eu poderia ter passado a vida inteira aqui, pensa a velha (e aqui é sentada em uma cadeira de balanço tendo os ossos, que no passado foram nádegas, amparados por uma almofada bege), imóvel, pensa a velha, sozinha, pensa a velha, e poderia ter sido perfeito. A vida não é lá, pensa a velha (e lá, para a velha, já é a partir dali, do centímetro além de onde os seus pés se encontram, do centímetro além de onde a catarata de seus olhos lhe permite ver, do centímetro além daquilo que deixa de ser ela, a velha, para ser outra coisa qualquer), a vida é dentro de mim (e dentro de si a velha vive dores mais profundas do que as do parto que nunca teve, do que as dos cortes que nunca sofreu; e dentro de si a velha vive alegrias maiores do que as de reencontros, de vitórias, de sorrisos; e dentro de si a velha vive medos e vive orgasmos e vive anseios e nada em mares de que só ouviu falar e voa entre nuvens e cai em lugares que nunca conheceu). A vida, pensa a velha, será sempre apenas aqui (e a velha tenta erguer o indicador até a têmpora esquerda, mas o único movimento que o seu dedo agüenta é um leve tremor). A velha, a cadeira sem balanço, as nádegas agora ossos, a vida e a almofada bege permanecem ali, estáticas, enquanto na estrada de barro em frente à casa, rasgando a paisagem, um carro passa.
beijos

4 comentários:

Daniel Olivetto disse...

não tava podendo ler isso hoje... lindo, lindo, lindo, e lindo...

pra guardar...

lóviú, neguim

Paula Braun disse...

Lindo, e linda a foto do espetáculo.
Beijo.

Rafael Koehler disse...

só consigo pensar: 'que velha é essa? sou eu? é ela? ela quem? ela eu? ela ela?'

bagunça...

Léo Kufner disse...

bafo... você devia ser escritor!