domingo, 24 de fevereiro de 2008

carregando a vida nas costas como se a vida fosse uma mochila da Adidas


Oi, gente
Depois de mais um longo tempo de ausência (com duas desculpas de peso: menos de um mês para estréia de ‘Volúpia’, peça nova da Cia Carona; menos de um mês para o lançamento de ‘Aguardo’, meu primeiro livro) volto para o zôo. Hoje homenageando a menina que ri, a quem eu conheço tão bem, que faz parte da minha vida, que me ajudou e ajuda a construir a minha história. Beijos, menina que ri, minha melhor amiga. E que, neste beijo e nesta homenagem, todos os meus grandes amigos se sintam homenageados e beijados. Amo vocês.

Querida amiga formiga, escreve a menina que ri, não te cansas com esta folha maior que o corpo? A menina que ri carrega, nas costas, a vida, como se a vida fosse uma mochila da Adidas. ‘Sim, a formiga se cansa’, respondo eu, zelador desse zôo de bichos estranhos, para a menina que está em vôo. A formiga, morra ou não, chore ou não, tenha dores nas juntas, na coluna inexistente, nos joelhos que não tem, segue em frente. A formiga segue sem plano, sem estratégia de guerra, sem cantil à mão porque a formiga sente (sente?) que a folha nas costas não é só peso, não é só cruz, não é só fardo, é também sombra, é também presente. E eu, zelador desse zôo maluco, que conheço a trilha da formiga (porque larguei a câmera e olhei e olhei e olhei) e só pressinto a estrada da menina (porque ainda caminha), sei que ambas só não são mais amigas porque estão longe. E se não tirei uma foto da formiga sem a folha é porque depois de a folha ter caído e do sonho ter se realizado (para trás ficando o cansaço, a trilha longa, os músculos exaustos) é do percurso e da folha que a formiga melhor se lembra. É da flor e do percurso que a formiga tem mais saudades. É com a mochila da Adidas carregada com o peso da vida que a menina que ri vai sonhar.
O coração da menina que ri às vezes dispara. É porque esteve muito tempo morno, parado. O disparar do coração da menina que ri é como o suor na testa da formiga amiga: confidência, metáfora, poesia. Hoje, a formiga descansa na calma da sua casa. A menina que ri, melhor amiga, família, ainda está na estrada. Carregando nas costas a vida como se a vida fosse uma mochila da Adidas. A menina que ri escreve para a amiga formiga: não te cansavas com esta folha maior que o corpo? ‘Sim’, eu respondo. ‘Não’, diz a formiga. ‘A folha era uma parte minha. Era como o meu olho’. A formiga pisca o olho (ou a folha) esquerdo. E retribui o sorriso da menina.

A pedido da amiga formiga, envio seus beijos e sorrisos.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

o bichinho horroroso da ponta do dedo


Oi, gente
Mais um, antes que a fauna acabe.



Nada no mundo era mais feio do que o bichinho horroroso da ponta do dedo. Problema de nascença. A mãe, identicamente feia, morrera no parto. Criado por tios-avós bêbados, o bichinho horroroso da ponta do dedo nunca foi popular. Na escola, o bichinho horroroso da ponta do dedo sentava sozinho. O seu primeiro beijo ele teve em sonhos, e desde lá não teve mais nenhum. O bichinho horroroso da ponta do dedo descobriu a masturbação como uma mulher ansiosa descobre o cigarro. E com a masturbação descobriu a acne e as câimbras na mão. E, com a acne, o bichinho horroroso da ponta do dedo conseguiu uma superação: ficou mais horroroso ainda. Foi ao médico e o médico desmaiou. A curandeira dispensou honorários e fixou na porta do barraco em que atendia um recado breve: ‘fechado para nunca mais abrir. Dom renegado’. A farmacêutica sugeriu, olhos cerrados, eutanásia. Foi exorcizado pelo bispo, que chamou o papa. Foi exorcizado pelo papa. Mas um belo dia, manhã sem nuvens, o bichinho horroroso da ponta do dedo ousou olhar para o mundo com olhos de bichinho normal, sem as lentes da sua feiúra. E o bichinho horroroso da ponta do dedo viu que o céu era azul e o mar também. E o bichinho horroroso da ponta do dedo pensou que poderia ser feliz e que poderia voar e que poderia fazer filhos no útero que desejasse, na fêmea que escolhesse, do modo que lhe aprouvesse. E o bichinho horroroso da ponta do dedo roubou do armário velho de uma mercearia a faca sem ponta da dona capenga. E o bichinho horroroso da ponta do dedo esperou em um beco pelo útero que desejou, pela fêmea que escolheu. E, do modo que lhe ocorreu, o bichinho horroroso da ponta do dedo apertou contra as costas da fêmea a lâmina cega da faca roubada. Mas, de um jeito que surpreendeu o bichinho horroroso da ponta do dedo, a fêmea reagiu e agarrou a faca. Atônito, surpreso, estático, o bichinho horroroso teve o rosto cortado. E pela segunda vez na vida e nessa história o bichinho horroroso da ponta do dedo conseguiu uma superação: ficou mais horroroso ainda. O que se fala da morte do bichinho horroroso da ponta do dedo é que morreu sozinho, velho, com o rosto enfaixado. Isso é o que se fala, porque da morte do bichinho horroroso da ponta do dedo ninguém sabe nada.

Beijos feiosos deste bichinho

domingo, 10 de fevereiro de 2008

aqui, sem pouso, é a tua casa


Oi, gente.
Desculpem a ausência prolongada. Trabalhando em ‘Volúpia’ (com todos os sentidos que essa frase possa conter), a peça nova da Cia Carona. Acabando ‘Aguardo’, meu primeiro livro (que deve ser lançado no início de março). E feliz. Feliz por vários motivos, e entre eles por ontem ter visto o ensaio aberto (é assim que foi chamado, Dani?) de ‘A Casa do Sótão ao Porão’, da Cia Experimentus, de Itajaí. A melhor coisa que eu vi em muito tempo. Singela mas sem medo de ser ousada. Metalingüística sem ser hermética. Respeitosa sem ser chata. Fiquei emocionado (o que é raro). Interagiram comigo durante o espetáculo (o que odeio) e curti. Inveja boa de vocês, guris (Dani, Sandra, Jô, Marcelo). E um orgulho colossal por conhecê-los. Obrigado pelo que me causaram.
E retornando à fauna, com vocês (rufar de tambores desafinados): Spoleta, a borboleta.



Como um homem que trocasse de pára-quedas durante um salto, Spoleta parava em galhos (mas não era ali, não era em galhos), parava em postes (também não, não era em postes), em calhas (tampouco em calhas), telhados (as telhas escorregavam), varais (tremiam), janelas, piso térmico, folhagens (transparência, comodidade, ecologia), mas Spoleta, a borboleta, assim como o homem em queda, ainda caía. Até ontem não estava apavorada. Até ontem Spoleta escolhia o pára-quedas pela cor, pelo conjunto, pela harmonia, pela textura. Acreditava em lares. Acreditava no dia em que, olhando entre as folhas da bananeira, reconheceria o lugar da futura casa. Spoleta, a borboleta, acreditava em pousos, na morada predestinada. Não era burra, a Spoleta. Se foi careta, foi uma única vez aos doze ou treze quando estava em crise. Aquela crise havia passado. Agora Spoleta sentia um leve aperto entre as asas, um desequilibrar no vôo, mas seguia procurando um pára-quedas com o nome de casa. Mas ontem, de repente, levada pelo vento na praia, Spoleta chorou. Desesperada não compreendeu a brisa que a carregava. Spoleta ouvia um uivo cochichando macio na antena esquerda ‘esquece calhas, telhas, postes, fios. Aqui, Spoleta, sem pouso, é a tua casa’. E Spoleta teve medo de cair. Mesmo com medo e sem pára-quedas, Spoleta conseguiu. De ontem até hoje não caiu. Até hoje não caiu. Até hoje não caiu.

Beijos sem pouso de Spoleta, a borboleta sem casa.