domingo, 11 de maio de 2008

um balde vazio de pipocas

Mais um pouco de Eráclito Borges. E depois um texto meu.

‘O meu livre arbítrio é a possibilidade de não escolher a única porta aberta’

‘No país em que caminho (apenas eu, ninguém mais)
Por ruas vazias de postes, na areia vazia de mar,
Grito sem eco e sem vizinhos:
Estou sozinho, estou
sozinho’.

Com um movimento de pinça dos dedos trêmulos da mão direita, a velha encontrou, no fundo do balde, uma última pipoca. Levou-a à boca e esperou, na ausência de dentes, que ela amolecesse. Observava impassível, sentada na madeira úmida do banco da praça, o casal que discutia a poucos metros de para onde apontavam as dores de seus joelhos cansados. O homem, forte, elevava a voz e o indicador contra o rosto da moça. Falava ‘puta’, e a velha ria. Gritava ‘pensas que aquilo não me machucou?’, e a velha aplaudia. ‘Achas que o que tu fazes não tem conseqüências? Que não dói aqui?’, o homem mostrou o próprio peito quando a velha cuspiu o resto da pipoca na grama úmida da praça. ‘Não tem desculpa. Não tem desculpa’. O homem tirou de algum lugar (a velha não soube precisar de onde) um revólver. Apertou-o contra a testa lisa da moça. ‘Não tem desculpa’. A moça chorava uma lágrima órfã que escorregava de um de seus olhos. A velha apertava o balde sem pipocas torcendo para que a moça falasse algo, torcendo para que ela se explicasse. A moça continuou calada até que o som do tiro abraçou um suspiro baixo e curto. O corpo da moça cobriu a grama com o seu peso pequeno. O homem largou o revólver como uma mulher se despede do amante ao perceber a imprevista chegada do marido. Joelhos manchados de barro, o homem manchou também as mãos com o sangue que vertia da testa da moça. A velha colocou o balde sem pipocas no banco (feito filho carinhosamente ajeitado no berço), demorou para se erguer, demorou para chegar perto da moça morta, demorou para acariciar o rosto desesperado do homem forte, demorou para deixar de tocar o rosto atônito do homem forte, demorou para cessar as palmas que iniciou após deixar de tocar o rosto atônito do homem forte, demorou para falar para o homem forte (ainda desesperado, ainda atônito) e para a moça (ainda morta) que achara lindo e poético aquilo de se morrer por amor, aquela cena, aquele ato. Despediu-se erguendo um ‘bravo’ arcaico e falou ‘Pena que na vida real as mortes são apenas mortes’.

Beijos

7 comentários:

Léo Kufner disse...

que lindo seu cramonho!

eita!



adoooooro

Rafael Koehler disse...

o egoísmo domina a sociedade contemporânea.

ela fez algo pensando apenas nela, esquecendo das dores que poderia causar nele.
ele não suportando sofrer, mata ela, pensando em diminuir as suas dores.
os dois egoístas.
os dois merecem a morte?
seres egoístas merecem morrer?

sinceramente não sei se alguém merece a morte como castigo, creio que não... mas que ela merecia um castigo e ele também, isso sim.

E viva a velha... que vê tudo de fora e não ajuda, nem atrapalha, não se move. Viva o egoísmo da velha!

=)

Dona Baratinha disse...

Oi Gregory!
Chego no seu blog através da menina Paula...e desde o primeiro texto...
Agora que vi seu texto encenado, na última sessão de Volúpia, fico mais a vontade pra te escrever também e dizer: VOCÊ É FODA!!!
Parabéns pelos textos...agora só me falta o livro...beijos

Sandra Knoll disse...

ai ai....a vida real...
lia isso com os dentes apertando uns aos outros e a mandíbula tesa.
Vais ficar sumido?

Daniel Olivetto disse...

sempre um bafo isso aqui... uau!!!

simbora no Capitão do Mar... beijooo

vou ler agora de noite!

Paula Braun disse...

Pra variar, lindo.
aprendo um monte por aqui.
Beijo.

Unknown disse...

Um tiro sutil
Cubiak