quinta-feira, 19 de junho de 2008

A vida sem cachecol (ou O que é menos real do que um amor de fachada?)

Eu voltando à velha forma de destilar veneno contra tudo. Não me gosto quando estou assim, mas faço o possível para aproveitar ao máximo essas horas de ceticismo e desilusão.

Quando todas as coisas finalmente pararem de fazer sentido o que restará no abismo além do frio e de um espelho? Prefiro o frio, disse o menino. Eu entendo o menino.
Se todas as coisas caminham inexoravelmente para a solidão porque não ser solitário desde já? Prefiro televisão, disse o menino. Eu entendo o menino.
Existe algo menos real do que um amor de fachada? Existe, disse o menino. Um fantasma. Eu entendo o menino.
Alguém ainda conseguirá nos abraçar com mais do que braços e nos entender com mais do que boa vontade? Acho que não, disse o menino. Concordo com o menino.
Sendo tudo assim, por que ainda falamos? Eu não falo, eu só respondo, disse o menino.
Estás com sono? Não, ele disse. Eu também não, comentei. Vamos falar sobre o quê? (pergunta minha). Podes escolher (resposta dele).
Resolvemos falar sobre nada, como alguém que faz sexo de madrugada porque é melhor do que ficar de olhos abertos para a escuridão.
Qual a tua cor preferida? Verde.
Qual o teu time? Flamengo.
Qual o teu ator preferido? Al Pacino.
Onde gostarias de fazer amor? Numa ilha deserta.
Perfume preferido? (o menino não sabia nomes de perfumes).
Sonho de consumo? Um avião.
Comida? Churrasco.
E assim fomos até gozarmos. Viramos de lado e fingimos dormir. Como a vida é simples quando se olha pra ela como se olhássemos admirados para uma vedete dos tempos do rádio...

Beijos (ou apertos de mão distanciados)

domingo, 15 de junho de 2008

pra falar de amor

Depois de xingar poetas, eis que escrevo uma poesia. Adoro telhado s de vidro. E adoro atirar pedras.
Estou escrevendo um novo monólogo, cujo título provisório é ‘Três Fadas e Dois Filhos’. Do jeito que ando escrevendo (como se a vida se resumisse a isso) deverá estar pronto logo.

Pra falar de amor eu vou calar o resto, fechar os olhos, baixar o rosto, tirar de perto a poeira da estrada, dos caminhos tortos, bater a toalha de mesa pra espantar as migalhas onde tropeço.
Pra falar de amor eu vou chamar baixinho por ti, sem que me escutes, pra que me sintas no teu sono calmo, eu breve e mudo, olhando enquanto dormes, alva e linda, na penumbra do teu quarto.
Pra falar de amor eu vou matar os verbos porque o amor que ouso é um amor quieto, menos obrigações, menos vetos, menos tudo exceto estares perto.
Pra falar de amor eu serei outro e tu a mesma, pois tu és tudo o que o amor almeja e eu, de mim, sei apenas que sou pouco.
Beijos

sexta-feira, 13 de junho de 2008

na tela plana do vidro fumê da janela da casa


Boa noite, gente. Texto daqueles que só o Dani gosta (então esse é de novo pra ti, querido). ‘O Capitão do Mar’ está pronto. Atracará no porto de Itajaí em 2009.

‘Estou cansado de assassinatos’, disse Gregory sentado na poltrona desfiada por unhas dos gatos. Tinha três malhados. Estava nu, uma toalha molhada dormia a sesta no piso úmido da sala. ‘Estou cansado de traições’, disse Gregory procurando pela faca ainda suja de requeijão. ‘Estou cansado’, disse Gregory e esperou a porta abrir para observar o Gregory que chegaria em breve (como sabia Gregory que o outro Gregory chegaria, eu, que também me chamo Gregory, não sei, não me foi dito). ‘Estou cansado de ver o tempo passando na tela plana do vidro fumê da janela de casa’, Gregory pensou. ‘Estou cansado de assassinatos’, Gregory pensou. Gregory pensou, ‘estou cansado’.
Aberta a porta, o outro Gregory jogou a pasta no chão e pousou a chave do carro na mesa de madeira rústica. O Gregory cansado de assassinatos ergueu-se súbito e encostou o requeijão da faca no pescoço do outro Gregory. ‘Estou cansado de assassinatos’, ele disse. ‘Estou cansado de traições’, falou mais baixo. ‘Estou cansado’, sussurrou. O requeijão colou-se à fatia de pão do pescoço do outro Gregory. O outro Gregory, temendo a morte, orou baixinho (o outro Gregory acreditava em deus, em búzios e em duendes. Não me perguntem como sei, porque eu que narro e que também me chamo Gregory não tenho resposta alguma. Sei apenas que sei, como um Sócrates às avessas). E o outro Gregory, o que orou baixinho, sem saber também o porquê, gritou (o grito aproximando jugular e requeijão) ‘não existe assassinato, não existe traição, não existe cansaço, não existe esse Gregory que me ameaça, não existe essa casa’ e pediu ‘deus pai, desapareça esse Gregory nu sentado na poltrona da minha casa. Búzios, icem o corpo magro desse Gregory nu sentado na poltrona da minha casa. Duendes, matem esse Gregory nu sentado na poltrona da minha casa. Desapareça, Gregory. Desapareça’. E o encanto se fez real e palpável pois eis que o Gregory desapareceu. Não o da faca. Não o da pasta. O Gregory que desapareceu fui eu, que narro. E não me perguntem como, mas o que sei é que o outro Gregory morreu assassinado com a faca enterrada no pescoço branco acumulando requeijão perto do cabo. E o primeiro Gregory, o que estava nu, o Gregory cansado, nunca foi encontrado.
Na cena do crime restaram apenas um corpo deitado ao lado de uma toalha molhada e o vidro fumê da janela da casa. Ah. E três gatos malhados.

Beijos

segunda-feira, 9 de junho de 2008

odeio poetas


Hoje um pardal morreu nas asas do tempo. Chocou-se contra o vidro. Ele ainda via um longo caminho, via mato, via morro, via dia quase se transformando em noite. Ia rápido, o pardal, assoviando uma melodia do Tom. Tinha um vidro. Tinha um vidro. A melodia do Tom bateu o bico e caiu na grama. O pardal morreu. Não morreu triste. Quem ficou triste fui eu. E tenho vergonha. Não quero ser o homem que antecipa o vidro, nem quero ser vidro, nem quero ser medo. Quero o meu vidro como o pardal teve o dele. Sem tristeza. Assoviando uma melodia do Tom.

Odeio poetas. Poetas que enaltecem poetas. Poetas que escrevem textos que afirmam que os poetas (eles próprios) são a brisa que eriça os pêlos da humanidade doente (traduzindo: eles, os poetas, seriam a nossa cura). Odeio poetas porque poetas são purpurina. São laquê. São peruca. O vento não os balança. São escultura inabalável erguida do barro do auto-elogio. Poetas não fazem poesia. Poetas fazem rimas para almoços beneficentes, fazem cartas para os pais, para os amigos, textos para cerimônias de formatura. Poetas engatinham procurando palmas, apoio público, financiamento. Poetas odeiam poesia. A poesia que vive nas dobras da pele, que fede, que dói, que foge, irrita os poetas. A poesia que não pode ser escrita no jornal de domingo, a poesia que não serve para o sussurro no ouvido da noiva, a poesia que afunda nos bueiros das veias, a poesia que morre logo depois de formulada, essa poesia, que nunca trará louros a quem a produz, que nunca trará fama nem amores nem dinheiro, essa poesia avessa ao sucesso é a poesia que não pertence aos poetas. Vida eterna à poesia. Morte imediata aos poetas.

Beijo

terça-feira, 3 de junho de 2008

eráclito borges

Por total falta de inspiração (em que acredito muito pouco – acredito em suor, em tempo, em dedicação, em doação) não deixarei neste blog, pela primeira vez, um texto meu. Hoje não tenho nada a dizer além do que li de Eráclito Borges, e transcrevo. Dos mortos, sinto falta de alguns. Entre eles, de Eráclito.

‘Enquanto a finalidade da vida de todos os que conheço é descobrir sentido mesmo na ausência de felicidade, o meu objetivo é me manter vivo apesar da completa falta de sentido’.

E do ‘Diário do Isolamento’, Livro I, 21 de Janeiro de 1999:

‘Hoje eu acordei sem saber para quê.
O sol brilhava alto no horizonte e uma mulher linda gargalhava à beira do ouvido de seu namorado.
Um carro freou brusco para evitar um acidente.
O cachorro que havia acabado de urinar latiu para a sombra de uma árvore.
Um vizinho desligou o liquidificador.
Hoje eu acordei sem saber para quê.
E duvido que sol, mulher, carro, namorado,
Duvido que ouvido, cachorro, vizinho, acidente,
Duvido que sombra, que horizonte, que liquidificador,
Duvido que beira, brusco, para,
Que o, que do, que um, que a,
O soubessem’.

beijos